terça-feira, 26 de julho de 2016

CÃOVICÇÂO

CÃOVICÇÃO
(Juízos de um rafeiro)

Quando hoje, pela cálida manhã do estio, com penoso sacrifício tentava rilhar, graças a uns cãoninos que ainda me restam, um pequeno osso já meio sêco, sem carne nem tendões, que encontrei num monte de lixo ao dobrar de uma esquina, surgiram, na minha “modesta” mioleira cãonina, alguns pensamentos na que me propus a gatafunhar à sombra de uma velha árvore banhada pelo sol matinal enquanto o meu estômago enganado, se esfoçava para remoer o magro desjejum. Na companhia de umas dúzias de moscas que, como os políticos, com descarada insistência tentam abusivamente chupar algum do sangue que dentro do meu estinhado corpo ainda circula, dei comigo a matutar: ser cão, já é muito aborrecido, mas ser rafeiro, que é o meu caso, piora a situação; Mas ser humano deve ser muito bem pior.
Montes de gente que passa em frenético movimento na busca de um futuro melhor, nem olha para a minha tísica e repugnante figura; mas eu penso, e ainda que a minha linguagem seja incãopreensivel, se parassem um pouco para contemplar a minha expressão de sofrimento e ao mesmo tempo de lamento, que expresso, talvez andassem mais devagar e pensassem de outra maneira, em relação a mim e a eles próprios; sim, porque o frenesim que os persegue por causa de não se contentarem com o suficiente, não lhes deve dixar tempo para isso.
Sempre que ganincho em sinal de clemência se sou mal tratado ou porque os meus ossos não me dão descãosso, os humanos arengam, “deixa p´ra lá que é um rafeiro sarnento”; se uivo de dôr ou para comunicar o que sinto à outra cãozoada da minha família, dizem cãovicatamente, que “é mau agouro ou deve estar alguém prestes a bater a caçoleta”; se me agridem e eu meto o rabo entre as pernas e tento afastar-me cão ar de submissão, “não vale as côdeas que lhe dão” - que não são nenhumas; se as desejo, tenho que me arrastar penosamente a procurá-las.
Sei que sou um rafeiro; mas observo que muitos humanos, pelas atitudes que manifestam para cão os da sua estirpe, são muito mais rafeiros do que eu; as relações entre eles, aparentando harmonia, não passam de falsidade e inveja. Eu noto isso.
Os humanóides esquecem-se de que eu sou um amigo devoto deles, mesmo daqueles que não merecem a minha cãossideração; pesar de manifestarem o seu repúdio pela figura triste que aparento, esquecem-se que tenho um coração de ouro onde está entalhada a benevolência e o indulto, que me encaminham a lamber as botas de quem me desrespeita e maltrata.
Embora faminto e desprezado, ainda consigo possuir alento suficiente para dar umas lambidelas em forma de carícias, se me derem ocasião para o manifestar, porque não sei o que é o ódio, a ambição, a vaidade e a luxúria, que são as cãoponentes da verdadeira fraqueza de espírito dos humanos, que dizem ser gente, mas estão enganados.
É evidente que sonho com uma casota confortável, contudo não vou morder os outros cães para a obter, porque a minha ambição é modesta e procuro viver com a sorte que a natureza me deu, limitando-me ao pouco, que p´ra mim tem que ser o bastante. Não, não sou cobiçoso e em mim reina uma ambição moderada.
Pelo que reparo, a ganância tem transformado o ser humano num selvagem, que recorre aos mais escabrosos estratagemas para obter o que ardentemente almeja. Não é em nada cãoparável aos da nossa raça, a raça cãonina. Enquanto que na nossa parentela existe uma hierarquia naturalmente criada para que tudo funcione bem dentro da comunidade, nos humanos pulula uma anarquia real criada com propósitos artificiais, sem rei nem roque, repleta de imposições onde só alguns vivem à grande e à francesa, em detrimento da desgraça alheia. Não têm escrúpulos e não se coíbem de se assemelharem entre si, aos da minha raça, que no fundo são de uma linhagem digna da sua existência.
 “És um cão tinhoso, és reles como um cão, matar-te-ei como um cão, és pior do que um cão, até pareces um cão raivoso”, - dizem; contudo, se fossem como nós, os cães, tenho a cãovicção de que viveríamos num mundo melhor, mais brando e mais tolerante.

António Figueiredo e Silva
Coimbra, 24/07/2016
Ou:
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