segunda-feira, 28 de março de 2022

A “CRISE” (Pedreiros mai´las “pedreirices”)

 

Quando a responsabilidade no que se faz,

não é vista como um compromisso,

o trabalhador sujeita-se a cair na necessidade e

a transformar-se numa sanguessuga do esforço alheio.

(A. Figueiredo e Silva)

 

 

 

A “CRISE”

(Pedreiros mai´las “pedreirices”)

 

A narrativa que abaixo vai ser cavacada, não foi só para triturar o tempo; é uma narrativa fundamentada num acontecimento verídico constatado por mim.

Passou-se numa pequenina, mas engraçada aldeia, denominada Vila Verde de Oura, pertencente ao concelho de Chaves, onde possuo um pequeno “castelo medieval”.

 

Arca do Soberano
Isto aconteceu, já lá vão uns anos.

Por imposição relativa, para evitar que a força da gravidade pudesse vir a derribar uma parede construída em granito bruto, empilhado na ausência de cimento há mais de trezentos anos, tive necessidade de contactar com “artistas” (pedreiros) que se diziam entendidos na matéria de movimentar e equilibrar com segurança, pedras de granito de grande peso, a fim de reforçar o “fóssil”, porém de venerável estrutura, com indescritível valor afectivo para mim, que sou uma pessoa conservadora dessa virtude – se, como tal, pode ser considerado - materialista e achacado à conservação do envelhecido.

É daqueles “monumentos” em que cada calhau tem uma história p’ra contar.

Traçada a estratégia e assente a convenção dos trabalhos a efectuar e o seu custo com o empreiteiro, este prontificou-se e enviar no dia aprazado, empregados seus para consumarem os trabalhos de conservação e restauro.

Ás oito da manhã do dia planeado, lá apareceram. Eram dois. De boné enfiado na tola, cigarro dependurado ao canto dos queixos, munidos de duas marretas, duas alçapremas, dois cinzéis, uma fita métrica e uma colher de pedreiro.

Ao ver todo aquele aparatoso ferramental de “engenharia” com que se faziam acompanhar, pensei logo, temos gente! Fraquinha, mas temos gente. Vamos lá a ver no que isto vai dar – maquinei logo uma caldeirada de pensamentos entre a apreensão e a incerteza.

Bem, entre marretadas e cinzeladas lá deram início à labuta com tão aguerrida vontade, que me deixaram atónito, derrubando as incertezas à primeira vista raciocinadas.

Pensei ter constatado que realmente a crise tinha batido à porta daqueles fulanos, ao ver o acelerado modo como trabalhavam para que a sua jorna não fosse carpida, e certamente para que a faina nunca lhes faltasse e o patrão ficasse a lucrar algum.

É a crise - pensei eu - face às evidências “aterradoras” que incansavelmente e sem pejo, fulminam o apetite de trabalho do pachorrento povo português.

Todos os dias, durante três dias consecutivos, a partir das oito horas da manhã começava a peleja castigadora e vingativa contra as parêdes duplas de granito, que se prolongava até às cinco da tarde, com uma hora de intervalo para o almoço, como regula a lei e impõe a reclamação estomacal.

Segunda, terça, quarta… Quinta-feira (?), sem qualquer satisfação, não apareceram os “trabalhadores”, que eu pensara estarem afectados pela crise. Enganei-me.

Vim a comprovar que realmente estavam, não afectados por uma perturbação de falta trabalho, porém, por uma crise de desportivismo – semelhante à daqueles que largam tudo para ver a bola.

Visionada de outro aspecto, não foi mais do que uma crise de mioleira, que eles não conseguiam debelar. A irresponsabilidade. Quando um vício se entranha, adeus viola. A crise é mesmo certa.

Era dia “santo” de caça, sendo por isso, um dos dias da semana que eles religiosamente consagravam. Tocavam o trabalho por umas chumbadas às touregas, à carqueja, ou a rasurar o pelo do “casaco” de algum coelhito, que pelos pinhais andasse distraído ou assolado por alguma esfoira (transmontanismo= caganeira).

Apareceram no dia seguinte, como se nada houvesse acontecido.

Ao serem interpelados, secamente responderam:

- “Sabe, é que às quintas-feiras é dia de caça e nós não trabalhamos.

- Ah, tá bem, respondi.

Que poderia eu fazer, se, para executar o trabalho deles, não havia muito por onde escolher?!

Com algumas burricadas interpoladas pelo meio, que até redundavam em prejuízo do patrão, deixaram-me tão “atulhado”, que tiveram de zarpar. Foi o patrão que se obrigou a finalizar o serviço, lamentando-se da pouca sorte que lhe havia acertado.

Coisas da “crise”.

 

António Figueiredo e Silva

Coimbra, 20/02/2022

 

http://antoniofsilva.blogspot.com/

 

Nota:

Faço por não usar o AO90

 

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