sexta-feira, 2 de abril de 2021

EX-COMBATENTES DO ULTRAMAR

 

“A guerra é um lugar onde jovens que não se conhecem

e não se odeiam, matam-se entre si,

por decisão de velhos que se conhecem,

odeiam-se, mas não se matam.”

(Erich Hartmann)

 

 

EX-COMBATENTES DO ULTRAMAR

 


Já foi tempo em que a jactância da juvenilidade teve um peso assaz persistente sobre no dorso da minha maneira de sentir – como de tantos outros da minha idade. Com o andarilhar do tempo, a causticidade da vida trouxe à tona o conhecimento da realidade e a inevitável redução dos níveis de adrenalina e dopamina, que tiveram grande impacto na minha forma de reflectir, conferindo-me uma visão mais realista do aproveitamento que fizeram das minhas características físicas e intelectuais, ainda em estado de maturação.

Foi a época sazonal própria para a lavagem cerebral, onde a loucura e a sensatez se digladiavam por não terem uma medida calibrada. Não chegarem a mútuo consenso.

É lógico que agora, já bem calcetado com as pedras causticadas pelo conhecimento, a configuração de pensar, forçosamente, terá que diferente; objectivamente mais realista e mais ponderada. As copiosas chuvaradas do percurso transcorrido, limparam quase toda a saponária dos olhos, dando-me a oportunidade de ver com melhor clareza, quão grande foi a minha “inocente” burrice.

Visto assim e agora (que já é tarde), o que me importa ser possuidor de uma medalha ou um cartão de ex-Combatente do Ultramar?

Não contemplo razões para tanta polémica à volta de uma ilusão que em nada se traduz.

Fundamentalmente a nossa missão, (além de outras, como é inteligível), foi arriscar o nosso canastro para ganhar insígnias para outros; para aqueles que foram os embriões plantados brotados e vicejados na Academia.

Rapaziada… já tivemos o nosso valor, o nosso tempo; já fomos carne-p’ra-canhão; já conquistámos muitas medalhas que estão, com descabida vaidade, dependuradas no pau do “fumeiro”, daqueles que nunca deram um filho-da-puta de um tiro; nunca o fumo da pólvora lhes trepou pelas narinas; nunca cheiraram carne queimada, a não ser a frango-à-cafreal; nunca choraram de raiva; nunca dormiram com um ôlho aberto e outro fechado enquanto os ouvidos detectavam o quebrar do mais pequeno graveto sob as patas de alguma quizumba mais afoita na sua “digressão” noctívaga, em busca de carniça para nutrificar a sua prole; nunca tiveram necessidade de passarem-pelas-brasas em chão húmido e sem enxerga; nunca passaram pelo suplício de Tântalo; nuca comeram o pão que o Diabo amassou; nunca passaram por ciliciantes mínguas azêdas; tão azêdas, que nem vale a pena falar.

O seu principal papel foi sempre o de receberem agraciamentos, condecorações, numismas e subir de posição.

Companheiros, vós sabeis disso. Aliás, todos temos essa noção, que não é apenas percepção; é realidade.

Agora o que podemos esperar, se somos considerados como uma velha tralha, arrumada a um canto, neste mundo de sucata?

Não vejo razões para tanto burburinho; só serve para nos irritar e não vai levar a caminho algum.

As medalhas, os cartões e os louvores, não dão comida nem conferem estatuto, se forem colocadas a secar ao peito daqueles que realmente lutaram; ao peito daqueles que as conquistaram. Somente produzem efeito, quando o “terreno” é propício para a sua cultura e germinação; de resto, não tenham ilusões, porra! Façam uma trepanação o coloquem o cérebro ao léu.

Aqueles que ostentam todas essas benesses e que usufruem dos benefícios decorrentes dessas honrarias, ainda se riem de nós.

Lembrem-se de que os “heróis são eles”.

Tantas vezes tenho dito; “mandavam-nos pr’áli, somente com duas escolhas; ou matas e salvas o teu cabedal, ou morres e salvas o coirato do teu suposto “inimigo”. De uma forma ou de outra, isto é, vivo ou morto, defendes a Pátria.

É paradoxal, não é?! Mas a realidade é essa.

Meus “meninos”; numa guerra, não há escolha. A candeia de Diógenes não pode ser pendurada na ponta do cano de uma arma; não se pergunta ao “inimigo”, sem o conhecer de lado algum, se ele é amigo ou não; se optar por fazê-lo, jamais terá tempo para ouvir a resposta.

E agora, que a guerra já passou, não vejo o que possamos vir a lucrar com toda a algazarra que até agora tem sido feita? Algum elogio a título “póstumo” (para alguns), ás tantas, nem isso.

A única coisa que me revolta, é sermos evocados como ”vilões e criminosos” por um paupérrimo contador d‘estórias. Isso sim, chateia-me muito!

No entanto, ao que parece, o **Estado Português não desistiu de enviar mais alguns “vilões e criminosos” para aquelas bandas equatoriais onde o genocídio tem sido uma constante. Não contesto essa tomada de posição, todavia, não vou catalogar os que vão, de “vilões e criminosos”, como ousou fazer o português, “primo afastado” dos irmãos Grimm.

Muito gostava de ouvir agora, a opinião do tal “primo”, também, contador d’estórias, que não tem nenhuma noção do que é guerra. Talvez que, se tivesse provado do seu sabor, poderia não ter a sorte de estar cá para ‘storiar tais bosteiradas.

É tempo de pensarmos que nenhum de nós tem pretensões de chegar a general.

 

António Figueiredo e Silva

Coimbra, 02/04/2021

 

*Hiena em shimakonde.

 

**Excerto retirado do:

 JORNAL EXPRESSO

O Governo português vai enviar cerca de 60 militares para reforçar a ajuda na formação das forças especiais moçambicanas. A informação foi confirmada ao Expresso pelo Ministério dos Negócios Estrangeiros esta segunda-feira, dias após o ataque à vila de Palma, no extremo norte de Moçambique, em que dezenas de pessoas morreram e um português ficou ferido.

Sem comentários:

Enviar um comentário