sábado, 24 de julho de 2021

QUANDO EU MORRER (II)

 

“Conhece-te a ti mesmo”.

(Platão)

 

Quando apontamos o dedo indicador a alguém,

temos o polegar na neutralidade, e os restantes,

a apontar para nós.

(A. Figueiredo e Silva).

 

QUANDO EU MORRER (II)

КОГДА Я УМРУ

WENN ICH STERBE

WHEN I DIE

(A um *amigo “desconhecido” e à sociedade em geral)

 


Já sei que não vou escapar a algumas “mordidelas da nossa comunidade canina”, cuja dentição está sempre pronta para alegar que sofro da abóbora, não sou bem aferido mioleira, bati com a cabeça nas aduelas da selha quando nasci, etc., entre outros epítetos menos distintos para uma decência comunicativa interessante, com o fim de expressar e debater o contraditório, (se ele existe), daquilo que ouso pensar e faço questão de expor e defender com munhas e dentes. Unhas ainda tenho porque não sofro de onicofagia; mas, dentes, dos trinta o dois que na matraca durante muitos anos subsistiram, já só cá cantam cinco - e é um pau! Os outros comprei-os – e foram bem pagos!

 

O que tenho para transmitir é simples, mas não é por isso que não deixa de não ser um sabichinho extenso; contudo, julgo que vale a pena ser lido, meditado e filtrado pela fina rede da compreensão existente naqueles que têm a sorte ou virtude de a possuírem.  

 

A semente humana é tão ordinária e tão desdenhável, que a própria Natureza se empanzina dela, e por isso a lhe vai dando umas impiedosas sarrafadas, sem apelo em agravo. São dois motivos bastantes, para ninguém cá ficar a rir-se de quem bate-a-bota. E, no momento de cisão, é que a paridade estabelecida para tudo o que vive, é absoluta. A Lei Universal, só é na realidade imparcial no, (não confundir com ao), nascer e no morrer, quando o comprimento da linha que separa os dois estados, se dilacera. De resto, os princípios são um joguete de interesses nas mãos do ser humano, onde sempre imperou a lei do mais forte. Resume-se a um “chocalho” único que toca vários tons, consoante as mãos a vontade e o poder do “artista”.

- Ouviste, Pá?!  Mantem-te calmo, e pensa três vezes antes de chegar a tua vez. Lê com tino tudo que tenho para te dizer, porque não estou a brincar. Olha que isto é carburante para o teu miolo e não passa pelas tuas goelas. Por favor, preserva a quietude e avalia-te.

Sejas rico ou pobre, nobre ou plebeu, prêto ou branco, vermelho ou amarelo, quando adrega a chegar a tua vez, lá vais para os “anjinhos” - ou outro sítio qualquer- no gozo integral da paz “eterna”, que por direito Natural te pertence e que entendo ser teu dever usufruir desse gozo perpétuo, ainda que contrariado. Não vale a pena ficares entediado e meditativo antes do “revisor” chegar, porque ele não vai resolver-te nada. Ele olha para ti, apenas como um microrganismo, o que é uma realidade, pica e tu vais.

Depois do embarque, que os que cá ficam consideram fatídico, se és transportado num bom ataúde, quem lucra é o cangalheiro; se és emprateleirado num imponente mausoléu onde a passarada pousa, e com irreflectido desprezo caga, já o lucro, é do pedreiro; mas se és enterrado numa cova funda, antes habitada por outros, é o técnico de profundidade (coveiro) fica a lucrar - é a sua sobrevivência até também “cair” inerte, num buraco semelhante aos que durante a vida abriu.

É certo que poderás optar, enquanto vivinho da silva, por uma “triunfante subida ao céu”, menos poluente, mais rápida, com reduzidos salamaleques e menor empestação de odores nauseabundos a contaminarem esta “minúscula” partícula azulada, que, sem destino, viaja através do Universo infindável; a cremação. É, pode ser uma opção tua. Esta consiste numa “rojoada” preparada a temperaturas pirométricas de tal magnitude, que ao fim de “escassos” minutos só sobra dos ossos, o calcário - infelizmente não dá para fazer canja. Este é seguidamente triturado numa rapidinha e fina moagem, que é presenteada já em “cinzas”, aos teus familiares, - herdeiros ou sucessores - como lembrança mórbida de uma partida, natural ou de funesta surpresa, disfarçadamente desejada por uns e abertamente não ambicionada por outros - inclusivamente por ti.

Tem paciência, mas tenho que dizer-te estas “barbaridades” reais.

Depois de tudo, os que cá permanecem, já sabem que estão na ponta da lança, conquanto que ficam com a possibilidade de montar a “pileca ou o cavalo” consequentes do espólio por ti compulsivamente deixado, e também por haveres sido impedido de o levar contigo – o implacável sistema aduaneiro da Natureza não to permitiu.  

Se são herdeiros, vendem e estoiram; gozam a vida aflautadamente à tua custa, (se tiveres deixado “cacau” para isso), e mais tarde ou mais cedo irão ter contigo transportados num caixão parecido com o teu, mas desta vez, pago pela comunidade; se são sucessores, darão continuidade ao teu sucesso, e, com alguma patetice e incontida ambição, vão dar cabo do canastro, para, com alguns achaques, como reumático, demência ou senilidade já avançadas, irem ao teu encontro - naturalmente já deves sentir-te esfalfado de tanto esperar, quem sabe!?

Eh, pá… agora aguenta a burra! Vou falar p´ra mim.

 P´ra “eu”, quando me apagar, dispenso arautos a propagandear o meu arrefecimento e panfletos colados por todos os cantos e postes, a anunciar que eu bati-a- caçolêta; não me incomodo com benzeduras ou pingos de água no nariz, pois sei que não vou mais constipar-me; flores, seja qual for a coloração ou o feitio, não me seduzem; bilhetinhos com “engenhosas” expressões de pesar, (algumas), não me apoquentam nem me estimulam o carpimento –  o meu sentir esvaiu-se e as glândulas lacrimais estão enxutas.

Suponho - isto não passa de uma conjectura –, é que estarei mortinho por zarpar o mais rápido possível. Por isso  e enquanto é tempo, cá no meu monástico confinamento a que o CIVID-19 me constrange, mas  ainda respirar fundo e com os cinco bem aferidos, opto pela incineração.

Tu, raciocina o que quiseres e faz o que te der na “bolha”.

 

António Figueiredo e Silva   

http://antoniofsilva.blogspot.com/

 

*O amigo desconhecido sou eu.

Apesar de toda a sinceridade expressa,

 legitimo que não conheço bem a mim próprio.

 

Nota:

“Sou burro”; não faço uso do AO90.

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