quarta-feira, 8 de janeiro de 2014

A PASSAGEM DE ANO DE UM INDIGENTE



Viver é a coisa mais rara do mundo.
A maioria das pessoas apenas existe.


Passagem do ano de um indigente


Dia 31 de Dezembro. Inverno. Os neons acendem-se mais cedo e as lucernas de leds sobreviventes do Natal, teimosas trepadeiras de árvores e montras, ajudam à festança de quem pode e convidam ao almejo quimérico as almas mais débeis daqueles para quem o sol da vida não sorriu; inidentificáveis, sem família e sem amigos, estes verdadeiros cosmopolitas são o pão nosso de cada dia em muitas esquinas da nossa urbe.
Encharcado e cheio de frio, sentou-se, pousou a seu lado o copo de plástico rachado e embalsamado por uma capa de acastanhada conspurcação, o banco ambulante aonde algumas almas mais caridosas durante o dia fizeram o depósito de umas moedas a fundo perdido, na mira de ganharem algumas indulgências ou por virtuosa caridade.
Com as mãos tiritantes encardidas pelo surro, enfiou os dedos nos bolsos do velho sobretudo e rebuscou nos restos mortais de um forro de cetim, mais algumas moedas que calmamente juntou às do púcaro, sua máquina registadora que há muito tempo “comprara” num caixote do lixo. Estava na hora de fazer a contabilidade de mais um dia de luta pela sobrevivência. Com resignada calma, confiou a face relvada de barba pardacenta e começou a contagem metódica, com acentuada repetição de cada quantia, escorraçando com esta repetência a consumação de algum desacerto contabilístico.
Claudicante, pois o cabrão do reumatismo ferrado como um cão raivoso, nas suas dobradiças esqueléticas rompidas pela idade não o largava, dirigiu-se por uma viela estreita onde havia uma porta antiga mas bem tratada encimada por um ramo de louro já meio ressequido pelo tempo e cagado das moscas, um sítio limpo mas tosco, onde pôde rilhar um pão na companhia de uma sardinha frita - mais queimada do que frita - e uma sopa quentinha, que lhe arrolhou por algum tempo os roncos cavernosos de estômago, até ali irrequieto. Por ali ficou a enovelar o tempo até que aparecesse uma estiagem; por fim, pagou e saiu, com ar tristonho, embrulhado no silêncio que consigo trouxera, apenas fendido pela carência sonora para pedir e pagar.
Ainda caíam alguns salpicos, mas ele vagarosamente saiu, apoiado no seu velho pau já polido pelo uso, em direcção ao costumeiro pouso noturno onde se sentou encostado à coluna esquerda da porta de entrada; com uma calma aparente e enigmático brilho nos olhar, enfia a mão direita por dentro do poido sobretudo e com expressividade de incontida satisfação puxa de um pacotito de plástico transparente meio cheio de beatas que durante o dia catara no chão, desfá-las sobre a palma da outra mão, rapa de uma mortalha, coloca nela o tabaco dedilhado, dá-lhe duas lambidelas e constrói com alguma perícia um tosco cigarrito que inflama com um fósforo, para alimentar o velho vício; puxada seguida de baforada, olha com admiração a suave e elegante dança da fumaça branca a diluir-se no ar por entre argolas e fitas curvilíneas numa liberdade sem limites, que talvez ele ansiasse por possuir.
Levanta-se de novo, e, cambaleando sobre meia dúzia de passos, arrebanha de dentro do caixote do lixo, seu armazém diário, uns cartões que haviam servido de embalagens de produtos made in China, com os quais daí a momentos fará o acolchoamento do seu catre.
Alinha-os no chão, mais uma pausa para a ritual cigarrada, enquanto desamarra o cordel de uma outrora nova mochila, de onde tira uma manta que lhe vai servir de fraca carapaça contra o frio na qual se enrosca para sonhar que ao romper do dia o Ano Novo talvez venha a ser melhor.
Nem o rás- trás- pum dos foguetes, nem os testos das panelas nem a algazarra etílica o fazem perder o sono; adormece a sono solto como um justo.
  Ao romper da manhã, quando a coroa do astro-rei, iniciava a albificar a escuridão do céu, ainda mantinha a melhor posição que conseguiu para encher o tempo de mais uma noite no queimante fadário da sua vida. Encolhido sobre a dureza do chão acartonado e mal aconchegado pela aparente proteção da rasca manta, cinzenta como a sorte que o guiou àquele estado, mais uns míseros farrapos, à entrada do prédio que o protegia da chuva copiosa que sem piedade que do céu caía, estava aquele vulto escuro, tão enroscado que mais parecia um ouriço-cacheiro a sonhar não sei com quê e alheio à passagem de alguns “felizes” para o trabalho, ainda ressonava a sono solto; de vez em quando movia os beiços por entre os quais aparecia a ponta de uma língua rosácea a balançar com extrema lentidão, a jeito de curioso espreitar, num gesto vagaroso e delicado, como se estivesse a saborear uma grande lambarice. Depois, com rugas de satisfação a aflorarem por entre sebosa barba de três ou quatro dias, parava novamente e continuava a sua caminhada nos braços de Orfeu.
Já dia claro, abriu um ôlho, depois outro, esticou os cansados tendões e as frouxas fêveras e, tomando a posição de assentado, observou à volta enquanto o céu copiosamente urinava; com a cara turvada de infinita tristeza, pôde comtemplar que afinal nada do que tinha sonhado havia acontecido! Mais dias de peleja viriam para assegurar a sua existência.
E nós, tristes indigentes também, inda pensamos como este miserável, que as coisas mudam de um dia para outro, chancelando-o com imensas e às vezes desmedidas paródias, mas isso nunca irá acontecer.

António Figueiredo e Silva
Coimbra, 01/01/2014
www.antoniofigueiredo.pt.vu


  

Sem comentários:

Enviar um comentário