quinta-feira, 18 de julho de 2024

DA GUERRA NO ULTRAMAR

 

Quando os ricos fazem a guerra,

são sempre os pobres que morrem.

(Jean-Paul Sartre) 

 

DA GUERRA NO ULTRAMAR

MOÇAMBIQUE

(Com as restantes ex-colónias sucedeu o mesmo)

 


    Distrito de Cabo Delgado. Conheci bem aquela faixa no norte do Moçambique, que à época, fazia fronteira com a Tanzânia, tendo como linha demarcadora o Rio Rovuma.

Eu andei por lá, e, protegido pela sorte ou pela força Divina, não bati a caçolêta.

Lamento, no entanto, com evidenciado pesar, aqueles que compulsivamente deixaram este mundo, sem pressa nem vontade de o ter feito; que Deus os comtemple com a quietude celestial de que são dignos.

Tudo o que fizeram, enquanto possuíram a sua actividade plena, foi para conservar a tranquilidade existencial entre povos, atidos a formas de pensar, costumes, e credos distintos. Muitos desses corajosos ficaram por lá esquecidos, ou, sei lá, foram papados por alguma Kizumba (para quem não saiba, hiena em Shimakonde), porém, seu sacrifício foi imprescindível; tanto para os que por lá se mantiveram, como para a diáspora de outros, que daquelas terras zarparam de mãos vazias, com uma mão atrás e outra frente, assustados e desnorteados, e, por força das circunstâncias, terem de recomeçar uma nova vida, numa “nova” sociedade, que nem por isso os recebeu com a dignidade que moral e eticamente lhes era devida.  

Hoje, se alguns desses “heróis” ainda existem, - como eu -, estão tolhidos pela velhice. Uns, artríticos, outros moucos ou ceguêtas, com a capacidade de raciocínio debilitada, e são parcamente valorizados pela missão que em tempos idos, lhes foi atribuída cumprir sob a égide da decidida frase: “Em defesa da Pátria”.

Essa defesa, que encheu os bolsos a muitos oportunistas e gerou muitos penduricalhos suspensos ao peito de sumptuosos uniformes, resultou num verdadeiro desastre. Um autêntico cântico à derrota. Mas, adiante.

Neste instante, recordo em silêncio, porém, com amargurada saudade, o que por lá observei, e alguns dos bons e maus momentos que por lá vivi.

A idade era outra e o falacioso lençol “cor-de-rosa” da fantasia e a minha loucura aparvalhada, turvavam-me o pensamento. Tudo eram planuras. Mesmo percebendo o perigo que corria, o pavor não se apoderava de meu inquebrável interior. Estava mesmo psico-adaptado - como hoje é defendido em psicologia, a vida obedece a uma sequência de estágios que tocam a todos nós, quer queiramos, quer não.   

A partir de faustosos gabinetes, todos éramos, como simples marionetas, co-mandados por aqueles que levavam os louros, sem nunca terem dado o corpo ao manifesto, sem terem disparado um tiro, e sem serem atingidos por alguns fragmentos de metralha que a muitos ceifaram a vida, ou pereceram entalados e enlatados dentro de uma aeronave ou catapultados aos fanecos por uma mina traiçoeira ou ainda atravessados, siderados e desfeitos por uma granada de bazuca. Tudo isto sconteceu.

Eu compreendo que a guerra é assim. O que não alcanço é porque é que o ser humano a promove?!

Como tantos, passei por variadas privações; usufruí momentos de prostração e de revolta, inquietantes; tive sonos e alimentei fantasias, pouco repousantes e perturbadoras. Percebi o que é passar pelas brasas, esticado sobre um “colchão” plaino e duro, de cimento frio; entendi, que muitas é vezes tem de se comer o que não se gosta – o apetite e a necessidade a isso obrigavam; suportei engolir em sêco a ouvir o que não desejava – porque a meu ver, a razão não era justa, mas a obediência assim o impunha; aprendi a fraternizar com pessoas inteligentes e ponderadas, com quem fui ao longo do tempo, limando e polindo a minha maneira de ser, e a gerir e ponderar as minhas atitudes; não consegui evitar, contudo, a convivência com “calhaus”, autênticos cêpos, com as cabeças repletas de bosta, armados em xico’espertos, que me serviram de bitola comparativa para a afinação da minha moral e da minha ética; princípios pelos quais sempre me procurei orientar durante toda a minha existência. Mesmo hoje, só falharei, se o meu encéfalo me atraiçoar - estou sujeito, quem sabe?!

Mas compreendi que a vida é isto. Tudo o que dela germina, quer de bom quer de mau, são lições que temos de apreender, e, acima de tudo, compreender, para podermos fazer uso delas, riscando, é certo, do nosso cardápio consensual, aquelas que a nossa moral condena.

Vi e aprendi tantas coisas por aquelas terras, que considerava colocadas no fim do mundo! Para concluir que, afinal, qualquer lugar supostamente situado no fim do mundo, pode, do mesmo modo, estar colocado no princípio do mesmo.

A retomar o tema:

Aquela guerra, que poderia ter sido evitada, foi sustentada pela juventude de várias raças, cores e crenças, que após algum tempo de lavagem cerebral militarizada, lhe era entregue uma arma como companheira, e agora… desenrasca-te; ou matas quem não conheces e nunca te fez mal, ou és morto por um desconhecido, que, sem te conhecer também, foi ensinado a odiar-te.

Esta permuta surda e muda de valências promovida por “entendidos”, é que tem originado as guerras! O Inferno da Humanidade.

É aqui que reside a razão da incoerência da guerra.

A mim, deram-me “asas” para voar, e, com alguma sorte, sempre consegui aterrar inteiro; nem sempre imune a algumas chumbadazitas de “canhagulo”, (espingarda antiga, de carregar pela bôca), ou uns “furitos” provocados por balas de metralhadora; mas sempre consegui chegar a terra com o canastro inteiro e o ânimo renovado; a outros “ofereceram” metralhadoras, canhões, morteiros e outros artefactos, “benfazejos”, mas malditos, que eram obrigados a utilizar, para se manterem a respirar.  

Uns ainda tinham a fadário de saborear umas refeições malfeitas, mas quentes, em quanto que outros, infelizmente, se vingavam numas rações de combate, a sua sobrevivência obrigatória, regando sob estrita moderação o precioso líquido H2O, que o seu pequeno cantil continha.

Havia também, os que podiam desfrutar de uma cama “limpa”, dentro de instalações erguidas para o efeito, mas mão se safavam à selvajaria manhosa dos percevejos, que com o uso de anestesia endovenosa, atacavam pela calada da noite; outros, coitados, cavavam buracos e abriam sulcos, que depois cobriam com ramos e folhagem, para se camuflarem e observarem até onde a visão podia alcançar, no esforço hercúleo, vezes sem conta frustrado, de zelar pela sua sobrevivência e a dos colegas. Era imprescindível o ôlho-vivo e os ouvidos isentos cerume. Qualquer estalar de um gravêto, poderia ser o início do fim.

Vi alguns sem cabeça; outros, sem um braço, sem uma perna ou sem ambas; sem um ôlho, ou completamente inertes, com o corpo parcialmente desfeito por uma bazucada, ou por outra qualquer munição de artilharia.

Posso falar ainda, daqueles que, depois de uma tempestade tropical, ficavam todos encharcados; as viaturas atoladas na lama, e, para concluir a falta de sorte, os velhos emissores movidos por uma manivela, quando lhes dava na venêta, também se recusavam a operar. Era uma grande chatice!

Com o conhecimento antecipado da área para onde se tinham deslocado, lá íamos nós, com olhos de falcão, encurralados num velho e barulhento “avoão” Harvard T-6G, previamente munido com uma bateria de rockets, sobrevoar a vastidão daquele espaço tropical com vista à localização da coluna, para posteriormente procedermos ao lançamento de pão, e outra “mercadoria”, que era a mais almejada de todas; o correio! Os sacos com os aerogramas, as cartas dos famíliares, das namoradas, das correspondentes, das madrinhas de guerra, e determinado correio oficial.

Quando localizávamos a coluna militar, a vista aérea, era o suficiente para avaliarmos a situação aflitiva em que ela se encontrava; viaturas semi-enterradas na lama  e rodeadas por água, sem dali poderem sair; o pessoal dos seus efectivos, devido à camuflagem da farda que usavam, mais pareciam conjuntos de rãs graúdas, do que pessoas, a passarinhar por aqueles “lamaçais” pastosos, coloridos por lama, água barrenta e amarela, onde as botas se afundavam; vezes sem conta, aquela barrela cremosa atingia a zona testicular - isto até era uma benesse, porque ajudava a serenar os ânimos mais libidinosos da maralha. Uma decepção e tristeza!

O nosso íntimo carpia, mas nada mais podíamos fazer, além dos posteriores lançamentos de víveres ou dar-lhes uma protecção periférica, em caso de ataque lançado pelo “inimigo”.

Não podíamos ir mais além, porque no tempo em que por aquelas bandas permaneci, ainda não tínhamos, “zingarelhos” (helicópteros).

Acho que me vou quedar por aqui.

Estou a sentir-me cansado da meloa, e irritado por encetado esta viagem no tempo. Pode ser que algum dia, se a senilidade não atacar, eu diga mais alguma coisa.

Agora vou fazer uma aproximação para encetar a minha “aterraige”, porque a minha disposição, mais não consente. Estou nervoso!

Porém, vou fazer uma “borregagem” (abortar a aterragem), e, antes de concluir a próxima “aterragem”, apraz-me questionar:

Para que serviu aquela guerra? Foi em vão, não foi?! A meu ver, não.

Serviu para atulhar o alforge a um sem número de pançudos, enriquecer alguns oportunistas, e medalhar quem disso não era merecedor. Foram os únicos que lucraram.

De resto, nenhum dos povos ficou beneficiado; nem nós, nem eles. A À data presente, ambos têm a sua nação super-hipotecado, e estão submetidos ao poder estrangeiro, ao qual, obrigatoriamente têm de prestar vassalagem.

E, NEM PIO!

 

António Figueiredo e Silva.

Coimbra, 18/07/2024

 

Observação essencial:

Isto foi realidade.

Qualquer comparação ficcionista,

será pura parvoíce, leviandade ou

maluqueira congénita.

 

Nota:

Não faço uso do AO90.

 

 

      

 

 

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