sexta-feira, 18 de março de 2022

TRADIÇÃO ASININA (Jogos Olímpicos em Loureiro)

 

“Mudam-se os tempos,

mudam-se as vontades”.

(Ditado)

 

 Mudaram-se os tempos e a burricada

transformou-se em aristocracia.

(A.   Figueiredo e Silva)

 

 

TRADIÇÃO ASININA

(Jogos Olímpicos em Loureiro)

 


Naquele tempo, quando a crise era mesmo genuína, qualquer motivo servia para entreter o pagode, que, à laia romana, se deleitava com algumas supliciantes parvoíces; uma delas, era os sacrifícios infligidos a animais, que tinham mais nobreza no seu porte, do que os seus donos e do que toda a cambada que assistia ao “festim” – incluso, eu, um puto impetuoso, que ainda nem tinha a noção do que era existir. Esta “terapêutica”, era ministrada em forma de porrada e chicotada, para que estes animais corressem até à exaustão, carregando os burriqueiros, eufóricos e já encharcados em “tintol”, enquanto a assistência escancarava os beiços, limpava o monco do nariz e ruminava a fome que lhe tangia o estômago, que reclamava por um naco de regueifa para “serenar” a azia.

Qualquer coisa por mais caricata e estúpida que fosse, servia para as “pessoas” mostrarem o lodo amarelo esverdeado dos dentes, - quem os tinha -, desde nascença por remover.

Uma dessas parvoíces eram as corridas de burro que, com o saltar um raquítico rego de água, provavam a sua destreza e força muscular, potenciadas pelas vergastadas dos seus “cavaleiros,” já podres de bêbedos, de que se serviam para “coçar” o lombo enfezado pela fartura de fome; pois nesse tempo até de palha havia falta. Enfim, “burros” que faziam do desgraçado do burro o bombo da festa. Já lá vão há volta de setenta anos, mas estas idiotices ainda mareiam na minha memória.   

Estas corridas eram feitas anualmente na segunda-feira de Páscoa, na minha terra, Loureiro, num lugar chamado Alumieira, cujo nome ainda hoje se mantém. Ainda hoje, quando por lá passo, ao recordar os velhos tempos, até dá a impressão de que naquele local ainda paira no ar um fétido odor a burranjeiro, (nome dado ás fezes de burro na minha terra).  

O objectivo deste “divertimento”, não mais era do que uma feira; era proceder à transação de animais, cavalares, muares e asininos. Para tal, tornava-se imprescindível que houvesse uma prova da sua robustez e velocidade; daí resultou o tradicional saltar do rego, que hoje caiu em desuso, mas no meu tempo essa moléstia foi transmitida às pessoas, principalmente às raparigas em idade febril, que faziam como os burros e gostavam de o saltar; claro está, sem taleiga, pois isso constituiria um atentado à moral pública e uma mácula ao bom-nome da família.

Era evidente, que, se alguma mais nervosa borrava o calçado domingueiro nas bordas do rego, ou caía nele por causa das saias travadas ou dos pés que sentiam a estranheza dos tamancos ou dos sapatos, usados em dias de festa, ou para calçar à entrada da vila, - Oliveira de Azeméis -, era um pagode! Um mar de satisfação gozadora para a rapaziada, ainda em medrança.

A maior parte dos burros, para juntar a alguns já existentes na minha terra, eram trazidos por aqueles a quem depreciativamente chamávamos de marinhões – zona de Pardilhó -, talvez porque nessa área tivesse havido, em tempos idos, bastantes marinhas de arroz. Emborrachavam-se e faziam mais a festa os “burros” dos montadores do que os burros que eles montavam e sadicamente castigavam.

Quando calhava a aparecer um burro mais corajoso, porque inteligentes todos eles são, e por saturação de porrada, fazia a aplicação da travagem às quatro patas, o “burro” de cima saía pelo pescoço do burro de baixo, como uma enguia lodosa escorregando das mãos, indo estatelar-se no panasco (relva bravia). Era bonito, atão num era?! Depois o animal pagava as passas-do-Algarve. 

Agora com a implementação dos “Jogos Olímpicos” de Loureiro, como há muito tempo li num periódico “local”, lá foi focado o desgraçado do burro como o grande atleta no salto do rêgo, que nunca teve nada a ver com qualquer jogo, mas sim com uma tradição, por sinal eivada de um certo sadismo, que às vezes nem é bom lembrar.

Quero aqui alegar, para que não subsistam confusões ou interpretações divergentes, que hoje, como é evidente, já não se faz aos burros o que se fazia antigamente, até porque estes animais, usando em pleno o gozo da sua protecção, já atingiram um estatuto social bastante elevado, como se tem vindo a constatar, e estão bem empoleirados na nossa sociedade; alguns, até fazem parte dos fulcros governativos. Mas aí, a “manjedoura” é outra!? Oh, s’é!?

 

António Figueiredo e Silva

 

Coimbra, 18/03/2022

http://antoniofsilva.blogspot.com/

 

Nota:

Faço por não usar o AO90

 

 


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