terça-feira, 1 de junho de 2021

RECORDAÇÕES V

 

Quando os ricos fazem a guerra,

são sempre os pobres que morrem.

(Jean-Paul Sartre)

 

RECORDAÇÕES V

(Força Aérea Portuguesa)

MUEDA

(Moçambique) 

A EMBOSCADA

 


Foi seguidamente ao jantar, por volta as 20.30 h. A noite até estava cálida, mas pacífica; digo até, porque no planalto de Mueda, devido à sua altitude, dava azo a que, de quando em vez, uma temperatura europeia nos “beneficiasse” com uma desagradável visitinha a reclamar o uso do capote, para que não nos esquecêssemos do “Puto” - na nossa gíria Portugal. Apenas ouvíamos com clareza a sonância cava do bater das cartas e as observações mais lamentosas e desatinadas dos perdedores, que no seu entender deviam ter ganho, mesmo se o azar continuava a cascar-lhes na sorte das jogadas.  Como quase todas as noites equatoriais, o ar era sufocante e o calor compulsava as nossas glândulas sudoríparas a uma laboração suplementar, para corrigir e estabilizar a temperatura dos nossos canastros com afincada persistência, para que estes continuassem o seu funcionamento com aparência de normalidade.

Mas nem o calor, nem as pérolas de suor que escorriam em “cascata” saídas de todos os poros, eram capazes de nos extirpar o maldito vício do jôgo da “lerpa” após o jantar, com “casadelas” de um escudo, ou do king, a tostão cada ponto – às vezes lá ia um sete-e-meio ou umas copas, que eram jogos menos “terroristas” pela sua mais baixa agressividade monetária, quando o infortúnio batia à porta da “palhota” – caserna – e os bolsos de alguns começavam a sua jornada na acumulação de cotão.

No meu caso, era precisamente uma “kingalhada” - como dizíamos – que estava a jogar, já não me lembro com quem.

De repente, começámos a ouvir uns rátátá… rátátá… rátátá… puuuum!... Puuuum!... Puuuum!...

Todas as luzes foram apagadas e comentámos, “os turras estão a atacar”. Abandonando as “estufas” de zinco, saímos todos para exterior em descontrolada debandada procurando um “abrigo” que nos parecesse mais seguro. Continuavam a ouvir-se os sons da metralha, mas não se ouviam quaisquer sibilar de balas, nem de granadas de morteiro, que emitem um assobio de funesto presságio, antes de fazerem o… puuuum!!!!, uma vez que nunca se sabe aonde a granada vai cair.

Via rádio, soubemos que uma coluna do exército que se deslocava pela picada que os trazia de Mocímboa do Rovuma para Mueda, estava a sofrer num ataque com fogo cruzado e que já havia vítimas; os puuum! Que ouvíamos ali perto eram do quartel do exército – que ficava à esquerda do fundo pista de aterragem que acabava perto da aldeia - que com recurso a morteiros, estava a bombardear a zona do conflito, em função das coordenadas recebidas – disto nada percebo, porque não era a minha especialidade, limitando-me tão só, a reportar o que me foi transmitido.

Via rádio, foi pedido o envio de um DC 3 (Dakota) a Mueda, para transportar os feridos de correntes daquela, para alguns, fatídica refrega.

Como a pista não era dotada de iluminação, lá começámos a colocar uns candeeiros nêgros, de configuração redonda, cheios de petróleo e com uma torcida bem abonada, que depois de acesos faziam uma tosca demarcação dos limites da pista de aterragem.

Aí a uma distância entre cinquenta a setenta metros da pista, já era selva; uma selva que bem conhecíamos; uma selva cerrada, repleta de mangueiras, que durante o dia às vezes íamos colher alguns dos seus frutos, que continham um leve sabor a rezina de pinheiro bravo.

Se os turras soubessem, daquele sítio podiam ter-nos limpo o sarampo, quando andávamos a proceder à colocação dos candeeiros. Nós sabíamos, mas a missão era para ser cumprida, e foi.

O avião aterrou por volta das duas e meia da manhã. Os mortos ficaram em “armazém”, mas os feridos foram “instalados” dentro da aeronave. Só se ouviam gritos aflitivos, num apelo à misericórdia, sem saírem quaisquer impropérios daquelas bocas sêcas e ensanguentadas, que lamentavam o sofrimento dos seus corpos com algumas partes despedaçadas e da sua alma em frangalhos, que os laços afectivos naquele momento garroteavam! Ainda me recordo, como se fosse hoje, dos gritos de dôr de um soldado que, do antebraço só tinha metade, além de outras feridas que lhe chagavam o corpo, “ aaaaiii! aaaaiii! que tenho uma filhinha com dois anos e nunca mais a vou ver!”  Além de outros que já não possuíam forças para poderem manifestar o seu sofrimento e gritar em alto tom, limitavam-se a trémulos gemidos e suspiros, arrancados do fundo da alma, com recurso às fracas forças que ainda lhes restavam, receosos de terem de provar do conhecimento das palavras do General Douglas Mac’Arthur, quando assevera que, “só os mortos conhecem o fim da guerra”.

Foi um espaço de tempo que, apesar de ser relativamente “reduzido”, me pareceu uma eternidade e me obrigou a interrogar sobre as razãos daquela guerra – e de outras semelhantes - em que ninguém conhece ninguém e sem razões pessoais matam-se mutuamente.

Esta questão fez-me concluir que: as guerras são feitas para encher a barriga a pançudos, começando pelo cimo, e acabando perto da base, onde os interesses subjacentes são o dinheiro e as medalhas, acabando sempre no ponto de partida.

Só por teste último parágrafo: havia ou não havia, que pedisse uma segunda, e até uma terceira, comissões? Só isto diz alguma coisa.

Pense quem quiser.

 

António Figueiredo e Silva

Coimbra, 13/01/2019

www.antoniofsilva.blogspot.com

 

Nota:

Faço por não usar o AO90

 

      

 

 

 

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