Quando os ricos fazem a guerra,
são
sempre os pobres que morrem.
(Jean-Paul
Sartre)
RECORDAÇÕES
V
(Força
Aérea Portuguesa)
MUEDA
(Moçambique)
A
EMBOSCADA
Foi seguidamente ao jantar, por volta as 20.30 h. A noite até estava cálida, mas pacífica; digo até, porque no planalto de Mueda, devido à sua altitude, dava azo a que, de quando em vez, uma temperatura europeia nos “beneficiasse” com uma desagradável visitinha a reclamar o uso do capote, para que não nos esquecêssemos do “Puto” - na nossa gíria Portugal. Apenas ouvíamos com clareza a sonância cava do bater das cartas e as observações mais lamentosas e desatinadas dos perdedores, que no seu entender deviam ter ganho, mesmo se o azar continuava a cascar-lhes na sorte das jogadas. Como quase todas as noites equatoriais, o ar era sufocante e o calor compulsava as nossas glândulas sudoríparas a uma laboração suplementar, para corrigir e estabilizar a temperatura dos nossos canastros com afincada persistência, para que estes continuassem o seu funcionamento com aparência de normalidade.
Mas
nem o calor, nem as pérolas de suor que escorriam em “cascata” saídas de todos
os poros, eram capazes de nos extirpar o maldito vício do jôgo da “lerpa” após
o jantar, com “casadelas” de um escudo, ou do king, a tostão cada ponto – às
vezes lá ia um sete-e-meio ou umas copas, que eram jogos menos “terroristas”
pela sua mais baixa agressividade monetária, quando o infortúnio batia à porta
da “palhota” – caserna – e os bolsos de alguns começavam a sua jornada na
acumulação de cotão.
No
meu caso, era precisamente uma “kingalhada” - como dizíamos – que estava a
jogar, já não me lembro com quem.
De
repente, começámos a ouvir uns rátátá… rátátá… rátátá… puuuum!... Puuuum!...
Puuuum!...
Todas
as luzes foram apagadas e comentámos, “os turras estão a atacar”. Abandonando
as “estufas” de zinco, saímos todos para exterior em descontrolada debandada
procurando um “abrigo” que nos parecesse mais seguro. Continuavam a ouvir-se os
sons da metralha, mas não se ouviam quaisquer sibilar de balas, nem de granadas
de morteiro, que emitem um assobio de funesto presságio, antes de fazerem o…
puuuum!!!!, uma vez que nunca se sabe aonde a granada vai cair.
Via
rádio, soubemos que uma coluna do exército que se deslocava pela picada que os
trazia de Mocímboa do Rovuma para Mueda, estava a sofrer num ataque com fogo
cruzado e que já havia vítimas; os puuum! Que ouvíamos ali perto eram do
quartel do exército – que ficava à esquerda do fundo pista de aterragem que
acabava perto da aldeia - que com recurso a morteiros, estava a bombardear a
zona do conflito, em função das coordenadas recebidas – disto nada percebo,
porque não era a minha especialidade, limitando-me tão só, a reportar o que me
foi transmitido.
Via
rádio, foi pedido o envio de um DC 3 (Dakota) a Mueda, para transportar os
feridos de correntes daquela, para alguns, fatídica refrega.
Como
a pista não era dotada de iluminação, lá começámos a colocar uns candeeiros
nêgros, de configuração redonda, cheios de petróleo e com uma torcida bem
abonada, que depois de acesos faziam uma tosca demarcação dos limites da pista
de aterragem.
Aí
a uma distância entre cinquenta a setenta metros da pista, já era selva; uma
selva que bem conhecíamos; uma selva cerrada, repleta de mangueiras, que
durante o dia às vezes íamos colher alguns dos seus frutos, que continham um
leve sabor a rezina de pinheiro bravo.
Se
os turras soubessem, daquele sítio podiam ter-nos limpo o sarampo, quando
andávamos a proceder à colocação dos candeeiros. Nós sabíamos, mas a missão era
para ser cumprida, e foi.
O
avião aterrou por volta das duas e meia da manhã. Os mortos ficaram em
“armazém”, mas os feridos foram “instalados” dentro da aeronave. Só se ouviam
gritos aflitivos, num apelo à misericórdia, sem saírem quaisquer impropérios
daquelas bocas sêcas e ensanguentadas, que lamentavam o sofrimento dos seus
corpos com algumas partes despedaçadas e da sua alma em frangalhos, que os
laços afectivos naquele momento garroteavam! Ainda me recordo, como se fosse
hoje, dos gritos de dôr de um soldado que, do antebraço só tinha metade, além
de outras feridas que lhe chagavam o corpo, “ aaaaiii! aaaaiii! que tenho uma
filhinha com dois anos e nunca mais a vou ver!”
Além de outros que já não possuíam forças para poderem manifestar o seu
sofrimento e gritar em alto tom, limitavam-se a trémulos gemidos e suspiros,
arrancados do fundo da alma, com recurso às fracas forças que ainda lhes restavam,
receosos de terem de provar do conhecimento das palavras do General Douglas
Mac’Arthur, quando assevera que, “só
os mortos conhecem o fim da guerra”.
Foi
um espaço de tempo que, apesar de ser relativamente “reduzido”, me pareceu uma
eternidade e me obrigou a interrogar sobre as razãos daquela guerra – e de
outras semelhantes - em que ninguém conhece ninguém e sem razões pessoais
matam-se mutuamente.
Esta
questão fez-me concluir que: as guerras são feitas para encher a barriga a pançudos,
começando pelo cimo, e acabando perto da base, onde os interesses subjacentes
são o dinheiro e as medalhas, acabando sempre no ponto de partida.
Só
por teste último parágrafo: havia ou não havia, que pedisse uma segunda, e até
uma terceira, comissões? Só isto diz alguma coisa.
Pense
quem quiser.
António
Figueiredo e Silva
Coimbra,
13/01/2019
www.antoniofsilva.blogspot.com
Nota:
Faço por não usar o AO90
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