domingo, 20 de junho de 2021

RECORDAÇÕES DA FORÇA AÉREA PORTUGUESA (IX)

 

A coragem é a primeira das qualidades humanas

porque garante todas as outras.

(Aristótoles)

 

RECORDAÇÕES DA FORÇA AÉREA PORTUGUESA (IX)

(Mueda-Moçambique)

 

Hoje é Domingo! Aliás, como “todos os dias o são”, porque a aposentação isso me consente. Mas é um dia distinto; hoje, o céu está embaciado; a rua, está deserta de transeuntes por causa da pandemia; o trânsito motorizado não se faz sentir; até nem ouço o latir do cão do vizinho, nem vejo pássaros a esvoejar pelos telhados. Então, para me distrair e sustentar o discernimento da actividade cerebral, à falta de melhor, vou percorrer um pouco do passado, numa viagem de mais de dez mil km no vazio do espaço através do tempo, que pouco a pouco, se me vai esvaziando.

  


Eram dois os pilotos que por lá andavam “àboar”, num dos períodos que eu me encontrava no Aeródromo de Manobra nº 51, em de MUEDA.

Os dois, baixitos, um deles de fraca estrutura, que não deixava de não representar um bom auxílio para a diminuição no consumo de combustível, uma vez que o peso específico tem uma grande importância na aeronáutica.

Um deles, ainda me recordo, era o Sacadura Bote (alferes); o outro, que não me relembro do nome, era mais para o cheiinho e entre o pessoal era conhecido (talvez ele nunca tivesse sabido), por “O Cowboy); porque trazia sempre do lado direito (sinal de que não era canhoto), um antigo coldre dependurado à cintura, com um pistolo obsoleto, de cano comprido, lá enfiado – desconheci se funcionava!? Se para atemorizar os “turras” ou amedrontar e escorraçar os grandes corvos negros que por lá cirandavam, também não sei.

De vez em quando lá se deslocava o duo, a pé, pela picada bem abonada de capim com mais de dois metros de altura, paralela à pista, que os levava até à “vila” de Mueda, “passarinhar ou passaretar” um pouco, certamente até ao bar da Cantina do “Bandido”, beber uma Leurentina para dar alguma de frescura ao corpo e alento à alma, ou lançar um olhar gaseado às duas filhas do “China”, dono da Cantina em frente, para alegrarem o espírito, aguçarem a cobiça e darem algum tempo de acalmia ao natural nervosismo da juventude.

Depois, lá regressam ao Aeródromo, provavelmente, não sem antes se terem desatravancado de algum ataque de luxúria, naquele tempo, o pior “inimigo” da nossa idade - fazia-nos a mioleira em frangalhos.

Em determinado dia, depois de terem aterrado, os dois no mesmo avião, como era hábito (que outros pilotos  não tinham), vindos de um voo não recordo de onde, a sua “geringonça aboadora” havia sido atingida por um balázio que entrou, ali… pelo bordo de ataque da asa direita, junto ao poço do trem de aterragem, e, pela trajectória que verificámos, que o projéctil passou mesmo uma rasante ao topo da carlinga que abrigava o “segundo piloto”, por acaso era um tal Sacadura Bote (Alferes) – o primeiro piloto era “O Pistoleiro”. No buraco deixado pela metralha, cabia um dedo indicador à vontade; porra!?

Quando saíram da “cabine” de pilotagem, puseram os pés em terra e averiguaram o acontecido, apossou-se deles um silêncio profundo e sua fisionomia ganhou uma côr ceriosa que combinava perfeitamente com os seus perfis apavorados - não era caso para menos, diga-se. Ainda bem, que o pior não aconteceu.

A partir daquele dia o pessoal começou a notar que eles tinham deixado de apreciar a paisagem daquele planalto (que era tão lindo!), porque começaram a voar menos; quando tinham de o fazer, a duração dos voos era por curtos espaços de tempo.

Possuíam, contudo, uma singularidade nata, que ressaltava da sua maneira de ser; a mania de que eram importantes – e eram. Eram uns importantes badamecos, a quem, por necessidade da guerra, lhes meteram um “manche” nas mãos.

Ainda hoje relembro que, durante a sua curta estadia, foi quando as colunas do exército mais sofreram por causa do apoio aéreo deficiente.

Depois de solicitada, havia sempre uma maneira de protelar um “bocadinho” a saída.

Até comentávamos entre nós: “eh, pá, os turras parece que adivinham quem cá está! Qualquer dia, fd….-nos”.

“Quem tem cu, tem medo” – é hábito povo dizer.

 

António Figueiredo e Silva

Coimbra, 20/06/2021

http://antoniofsilva.blogspot.com/

 

            Nota:

Faço por não usar o AO90.

 

 

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