sexta-feira, 16 de abril de 2021

FADÁRIO

 

Quando caligrafei estas linhas

(que foram publicadas em alguns periódicos),

até comentei com a minha esposa um vaticínio meu,

que de facto veio a consumar-se;

a pessoa que muito desabafou comigo,

num período em que eu não me encontrava em Coimbra,

suicidou-se.

 

FADÁRIO

(*Uma história verdadeira)

 


O tempo passa, mas os estigmas gritantes consequentes de uma sociedade podre, sem moral nem compreensão, permanecem gravados na memória de quem, sem culpa de ter nascido, sofreu no corpo e na alma as chicotadas dessa mesma sociedade.

Hoje todos são obrigados a ter um pai, nem que seja emprestado. Mas têm-no. E o nosso quem é?... Um traste qualquer? Um alcoólico? Um ricaço sem vergonha? Um trafulha sem escrúpulos? Sabemos que pode ser tudo, menos um homem com carácter e banhado pela consciência.

Aquela mulher, que em nova era bonita, num momento de fraqueza aliada à falta de conhecimento, “perdeu a cabeça”, e, na sua inocência, e num momento de “loucura” dissipou a virtude mais bela que a natureza lhe deu. A pureza. 

Foi numa pequenina aldeia, nos arredores de Coimbra, que aquela mulher, pobre como Jó, um belo dia deu à luz um par de gémeos, para alegria dos seus olhos e cruz da sua vida. Tratou de os criar da melhor maneira que pode, mas sempre num estilo de vida de supliciante sacrifício. Ninguém ajudava. Até o padre, pela Páscoa, não visitava o pardieiro onde morávamos, por aquela mulher ser mãe solteira. Nunca a igreja nos ajudou em nada, a não ser tentar retira-nos a fé, amesquinhando-nos perante os outros. Apesar de felizmente nos encontrarmos bem de vida, estas são amargas recordações que ainda não morreram e foram sempre a persistente força impulsionadora que nos ajudou a sulcar na vida, fazendo de nós aquilo que hoje somos. Não foi fácil!?

Ainda me recordo! Vivíamos num pequeno casebre sem divisões, onde a terra depois de varrida - quando era - servia de soalho. Quatro paredes esboroadas pelo tempo suportavam uma viga e meia dúzia de caibros onde dormiam dia e noite umas dezenas ou talvez centenas de telhas podres, que no verão serviam para arrefecer o velho pardieiro e no Inverno para o enregelar. A nossa lareira era encovada no chão, como uma lareira celta; não tínhamos bancos onde confortavelmente pudéssemos descansar; para isso serviam uns duros tijolos que nos calejavam o traseiro e nos incutiam a noção de quão difícil era viver. Quando havia sol, entravam os raios pelas frinchas das telhas partidas e faziam umas bonitas réstias de luz tingidas pelo fumo, ou pelas partículas de pó que pairavam em suspensão tangueando com os movimentos do ar. Se chovia, nem era preciso colocar bacias para aparar as gotas, primeiro porque não as possuíamos porque eram caras e segundo porque os pingos caíam directamente para o chão de terra batida, infiltrando-se de seguida. Como beduínos naquele minúsculo “deserto”, íamos arredando as nossas enxergas e os poucos farrapos em que nos enroscávamos tremendo de frio, para um lugar onde pingasse menos. Lá íamos sobrevivendo naquela triste enxovia sem que ninguém se compadecesse de nós.

Pequeninos ainda, andámos na mendicidade. Não me envergonho de dizê-lo. Descalços e a tiritar de frio, fomos pastores de ovelhas, por um salário de um prato de sopa, às vezes mal cheio, e um côdea de broa por vezes dura como cornos. Ainda me lembro como se fosse hoje! Naquele tempo aquela mulher corajosa, desprezada pela mentalidade atrasada da sociedade, fazia o que podia para nos manter vivos, nunca nos faltando com a educação, que ainda hoje mantemos, por dever moral e cívico, e em sua pesarosa memória.

Fizemos o ensino obrigatório, e seguidamente fomos colocados num colégio albergue para crianças. Tínhamos nessa altura onze anos. Foi aí que pela primeira vez, eu e o meu irmão sentimos os nossos pés quentinhos, porque nos deram uns bonitos sapatos pretos com solas de madeira, a que chamavam chancas, confeccionadas por um habilidoso artesão. Nós olhávamos para aquilo com uma adoração e um carinho que hoje não me merecem os melhores sapatos. Dávamos valor a tudo; hoje ninguém dá importância a nada.

Fomos crescendo e afinando o tino. Com isto também crescia em nós a vontade de libertação absoluta que quando atingiu o seu patamar ideal, largamos para a vida como pássaros saídos do ninho que mal sabem voar. Entre surpresas boas e más, desgastes físicos e psicológicos, pontapés e louvores, e à custa de muitos sacrifícios conseguimos afinal, construir uma vida condigna e da qual nos orgulhamos.

Eu sou cabeleireiro de senhoras, arte que sempre adorei, e o meu irmão enveredou pela construção civil.

Dois gémeos e duas vidas; dois caminhos e dois destinos; dois meninos, hoje dois homens, que souberam remar contra as agruras da vida, e que, graças à sua persistência e vontade de vencer, venceram mesmo!...

Estas são apenas vagas, mas ardentes lembranças de realidades que não gostaríamos de voltar a passar.

   “E aquela mulher, que em nova era bonita e teve um momento de “fraqueza” que a sociedade nunca perdoou, foi a minha (nossa) mãe!

Que pelo sacrifício e amor que nos dedicou dentro das suas parcas posses, ainda hoje eu a venero!

 

 

António Figueiredo e Silva

Coimbra

17/11/2005

http://antoniofsilva.blogspot.com/

 

*Esta história de uma realidade sem precedentes,

foi-me corajosamente contada na primeira pessoa,

com alguma comoção, talvez como um desabafo há muito

reprimido, para que eu a escriturasse e a mandasse publicar,

com o desígnio de beliscar algumas consciências abastadas,

            que não sabem o que significa viver na pobreza.

 

 

 

 

 

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