terça-feira, 9 de março de 2021

RECORDAÇÕES DA FORÇA AÉREA VI


 RECORDAÇÕES DA FORÇA AÉREA VI

MOÇAMBIQUE

(Sobrevoando Mueda, sobre as asas da saudade!)

 

Agora, já posso fazer-me à “pista” e proceder à narração de mais meia dúzia de “patacoadas e larachas”, sobre tão belos tempos que por lá passei! A saudade faz-se sentir!

Subsistem cronografias que para aqui não vou trasfegar, como é compreensível; não porque sejam factos que não possam ser relatados, todavia, não devem ser impressos ou gravados, por serem passíveis de suscitar especulações indevidas que poderão descambar em errados ou injustos juízos de valor.

Quando, depois de haver chegado a Mueda, iniciei as minhas “passeatas aboadoras” suportadas pela aerosfera daquele altiplano, ia observando de cima para baixo e ao redor, até onde o olhar conseguia descortinar, e sentia que havia uma fusão concertada entre a exuberância, a perigosidade e o mistério.

Era verdadeiramente maravilhosa aquela enorme tela verde natural que cobria o chão até perder de vista! Aparentava dormir a céu aberto, “pacífica e tranquilamente” respirando na paz dos deuses! Porém, uma serenidade enganadora; porque albergava por baixo um movimento frenético e diversificado de vida, e, em situação de emergência, parcos eram os espaços que permitissem um pouso seguro; enigmática, uma vez que nos era desconhecido o sítio, do qual podia sair à rédea solta, um projéctil, apostado em nos limpar a “gaivota” que nos transportava, e, juntamente com ela, o nosso “sarampo”. Mas devo dizer que naquele tempo, a idade da “maluqueira”, isso não nos passava pela cachola; a adrenalina bloqueava as sinapses neuronais e alguns dos nossos sentidos ficavam inertes, não obstruindo, contudo, o sentido de missão.

Nos meus passeios “flutuantes”, houve uma realidade que fui observando do ar, nos deslocamentos aos diversos locais em missões de serviço; por cada vez que passávamos pelas mesmas rotas, pequenas “machambas” (terrenos cultivados), aumentavam constantemente as suas áreas de cultura.

Às vezes, cortando o ronronar do motor, só dizia para o piloto que no momento ia agarrado ao “pau-de-comando” da aeronave, minha companhia e “protector” da nossa segurança; “acho que estes gajos andam a fazer muitas culturas, certamente para se abastecerem, quando começarem a traulitada a doer”. É natural que sim (ou coisa semelhante), respondia.

Mais tarde, comprovei não me ter equivocado. Foi isso mesmo que aconteceu.

A logística era-lhes (aos “turras”), somente necessária para o abastecimento de armamento e munições que podiam ser transportadas à cabeça, durante a noite, e até de dia, por carreiros que a majestática nobreza da floresta, do nosso olhar escondia. Paparoca, havia com fartura, por todos os lados. O chão era extremamente productivo mesmo sem semear. Na mata arborizada, a Natureza espontaneamente providenciava para que nada faltasse a quem conhecia a floresta – como os nativos daquela região, “turras ou não. O bosque africano é um verdadeiro pomar; não é composto de tojo, carqueja, giestas, touregas e zimboros; há muita comida – assim a saibamos descortinar.

Proteínas também havia à fartazana, porque a carniça nunca escasseava; andava por lá ziguezagueando, aos pinotes e aos saltos, comendo-se uns aos outros, sob a implacável rigidez das normas da selva - “a lei-do-mais-forte”. Era só engendrar maneira de caçá-la, sem se deixar caçar.

A título de curiosidade; conheci um livrinho de sobrevivência que era distribuído aos pilotos, onde, em desenhos a preto e branco, eram mostradas diversas plantas, raízes e frutos comestíveis, com os quais podiam apaziguar a fome, se alguma vez tivessem o azar de serem atingidos, ou se, por outras razões, se vissem obrigados a procederem a uma aterragem de emergência; até havia uns arbustos que davam uns pequenos frutos redondos, de casca avermelhada, que, metidos na boca e mascando-os, sustinham a sede – cheguei a prová-los e pude  sentir a sua acidez coagia as glândulas salivares a labutar.

Ainda hoje estou crente de que o verdadeiro Paraíso foi criado em África, que a ganância Humana, transformou num autêntico Inferno.

Para desfechar esta síntese, vou terminar com o fragmento de um sentido poema de José Leonardo Pinto, que aos comandos de um helicóptero, andou a peneirar pelos céus de Mueda, por onde eu, anos atrás, havia voejado - e com muita sorte estou aqui para historiar.

 

Porquê escolher a guerra,

essa luta indecente,

que assassina e sacrifica

o nosso irmão inocente?

Que mata por ideal,

que mata em nome de deus,

que mata em seu próprio nome?

 

Isto diz tudo.

 

António Figueiredo e Silva

Coimbra, 09/03/2021

www.antoniofsilva.blogspot.com

 

Nota:

Por enquanto, faço por não usar o AO90

 


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