“A Natureza não é democrática,
porue um
um burro, nunca pode chegar a cavalo”.
(António
Figueiredo)
O "BERNARDO”
(Um
naco da “burrografia” fabulada, de um
asinino)
Conheci-o
relativamente. Apenas o observei duas ou três vezes, a mascar uma “ervita”, ao
mesmo tempo que snifava o pó branco do
calcário que o tempo havia almofarizado, enquanto eu cavaqueava com o Ti Inácio,
seu dono e meu amigo.
Por conversas anteriores, sabia que o “bernardo”
era filho zorro da “Pinta”,
uma
burra caspuda, pardacenta, com uma pequena pinta prêta na testa – daí o seu
nome - e de olhar activo, através de uma das frequentes “traições” libidinosas
num desusado palheiro, com alguns jumentos lá do lugar, contra a vontade do “Velho” Inácio,
que não a queria ver cheia nem por nada. Vá-se lá saber porquê?! Ciúmes, sei
lá?!
Contava-me que ela era mesmo teimosa como
uma burra – assim se expressava – e era muito malcriada. Ocasiões houve em que
ele perdeu a paciência de moleiro, e, desvairado, só para a castigar,
carregava-a abundantemente com os sacas de grão, e a sujeitava a transmover,
carreiro acima, ladeado de touregas, carqueja, giestas e carrascos, até ao
velho moinho no alto da colina, onde o vento silvava e bramia, obrigando as “velas”
de linho a fazer rodar os mastros de carvalho que lhes serviam de assentamento a
uma rotação dolente, cuja função era, com recurso a uma tosca mas bem
engendrada obra de engenharia artesanal
(sarilho) que debaixo de um magoado chiadouro, fazia rodar a pesada pedra de granito redonda, (mó),
que num incansável rooom, rooom! se ia consumindo, na trituração do milho,
trigo, centeio ou cevada, com vista à sua transformação em farinha, que o Ti Inácio
maquiava – e bem - para a sua subsistência.
Contava-me que seguia sempre atrás da burra,
e de vez em quando chiscava-lhe o traseiro com um guiço, para que manhosa
(expressão dele), acelerasse a andadura, e ela respondia-lhe com uns traques
que o enraiveciam, porque o Ti
Inácio, pessoa muito respeitadora,
subentendia aquela desaforada peidorreira, como um descarado “vai à merda”! Ao
mesmo tempo que a tangia, ia conversando com ela, numa compreensível e indulgente
relação, e, ao que parece, – segundo afirmava – entendiam-se muito bem. Como
ela já estava velha, resolveu “rifá-la” e ficar só com o tal filho bastardo e único,
o “Bernardo”,
que
não tem mais nenhum irmão, porque a minha Pinta,
salvo esta escorregadela, foi sempre uma burra séria – larachas do “Velho” Inácio.
Houve um interregno, e os meses foram
passando. Há pouco tempo, passei lá pela parvónia e encontrei de novo o “Velho” Inácio.
Fez uma festa danada pelo nosso encontro, e, depois de longo palratório,
assumindo uma expressão de remorso, num triste desalento foi dizendo que, se
sabia, tinha vendido o “Bernardo”
e
não a mãe, porque este jumento, era muito mais preguiçoso, descarado, agressivo,
mal-educado e mais burro do que a mãe. É um verdadeiro jumento! – desabafou.
Acabei por saber, que o “velhote”, apesar dantes
não se ter entendido muito bem com a mãe do “Bernardo”,
agora,
pior se entendia com o filho.
O Ti
Inácio era um velhote patusco e engraçado; sempre com um
sorriso de bom recepcionista estampado na face rosada, onde eram visíveis
algumas carquilhas fundas, cavacadas pela idade. Mas era uma alegria conversar com
lele, tinha sempre uma ‘stória p’ra contar.
- Eu já tenho dito ao “Bernardo”: olha
lá, ó sua besta, eu falo p’ra ti e tu peidas-te? Daqui a pouco levas umas
arrochadas no lombo, qu’até danças o
berimbau. E o sacana, com cara de estúpido ainda se ri, azurrando mais alto. É a
música que ele mais sabe, mas dá-me cabo dos ouvidos.
Também já lhe disse:
- Olha lá ó meu jerico, tu não vales merda
nenhuma; qualquer dia és “rifado”. Então não é que o gajo levanta as patas e ia-me
apanhando a “chachada”?! Tens a mania
de dar nas vistas, mas eu ponho-te as palas de couro e aumento-te a taleiga.
- Se calhar sai ao pai - continuou. Bem,
como há muitos burros aqui na terra, não sei qual deles é; mas mãe, a minha “Pinta”,
(dizia
com alguma saudade), nunca me fez desfeitas com as deste burro. Os burros
novos, com o sangue na guelra têm a mania que sabem tudo, não é verdade?! Sabe,
o “Bernardo” também
não passa de um novato parvo e não assenta da cabeçada. Eu falo e ele não quer
saber. Não me passa cartuxo.
Estava na hora de eu zarpar, que já se
fazia tarde.
- É capaz de ter razão Ti Inácio;
dessas bestas, o Sr. percebe mais do que eu.
- Olhe, obrigado por este bocadinho, mas
está a anoitecer e eu tenho de ir embora.
- Então dê cá um chi-coração ao “Velho”
Inácio –
e abre os braços, com uma fisionomia de expressivo contentamento!
Lá os deixei; o “Velho” Inácio,
mai’lo insolente e agressivo, burro “Bernardo”.
O tal filho da “Pinta”,
que
tem a mania de zurrar, não só ao dono, mas para toda a burricada lá do povoado.
Alimenta a pancada de qu’é gente – sentenças
do Ti Inácio.
António Figueiredo e Silva
Coimbra, 06/06/2020
Nota:
Procuro não fazer uso do AO90.
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