sábado, 6 de junho de 2020

O "BERNARDO"


“A Natureza não é democrática, porue um
 um burro, nunca pode chegar a cavalo”.
(António Figueiredo)

O "BERNARDO”
(Um naco da “burrografia” fabulada, de um asinino)

Conheci-o relativamente. Apenas o observei duas ou três vezes, a mascar uma “ervita”, ao mesmo tempo que snifava o pó branco do calcário que o tempo havia almofarizado, enquanto eu cavaqueava com o Ti Inácio, seu dono e meu amigo.
Por conversas anteriores, sabia que o “bernardo” era filho zorro da “Pinta”, uma burra caspuda, pardacenta, com uma pequena pinta prêta na testa – daí o seu nome - e de olhar activo, através de uma das frequentes “traições” libidinosas num desusado palheiro, com alguns jumentos lá do lugar, contra a vontade do “Velho” Inácio, que não a queria ver cheia nem por nada. Vá-se lá saber porquê?! Ciúmes, sei lá?!
Contava-me que ela era mesmo teimosa como uma burra – assim se expressava – e era muito malcriada. Ocasiões houve em que ele perdeu a paciência de moleiro, e, desvairado, só para a castigar, carregava-a abundantemente com os sacas de grão, e a sujeitava a transmover, carreiro acima, ladeado de touregas, carqueja, giestas e carrascos, até ao velho moinho no alto da colina, onde o vento silvava e bramia, obrigando as “velas” de linho a fazer rodar os mastros de carvalho que lhes serviam de assentamento a uma rotação dolente, cuja função era, com recurso a uma tosca mas bem engendrada obra de  engenharia artesanal (sarilho) que debaixo de um magoado chiadouro, fazia  rodar a pesada pedra de granito redonda, (mó), que num incansável rooom, rooom! se ia consumindo, na trituração do milho, trigo, centeio ou cevada, com vista à sua transformação em farinha, que o Ti Inácio maquiava – e bem - para a sua subsistência.
Contava-me que seguia sempre atrás da burra, e de vez em quando chiscava-lhe o traseiro com um guiço, para que manhosa (expressão dele), acelerasse a andadura, e ela respondia-lhe com uns traques que o enraiveciam, porque o Ti Inácio, pessoa muito respeitadora, subentendia aquela desaforada peidorreira, como um descarado “vai à merda”! Ao mesmo tempo que a tangia, ia conversando com ela, numa compreensível e indulgente relação, e, ao que parece, – segundo afirmava – entendiam-se muito bem. Como ela já estava velha, resolveu “rifá-la” e ficar só com o tal filho bastardo e único, o “Bernardo”, que não tem mais nenhum irmão, porque a minha Pinta, salvo esta escorregadela, foi sempre uma burra séria – larachas do “Velho” Inácio.
Houve um interregno, e os meses foram passando. Há pouco tempo, passei lá pela parvónia e encontrei de novo o “Velho” Inácio. Fez uma festa danada pelo nosso encontro, e, depois de longo palratório, assumindo uma expressão de remorso, num triste desalento foi dizendo que, se sabia, tinha vendido o “Bernardo” e não a mãe, porque este jumento, era muito mais preguiçoso, descarado, agressivo, mal-educado e mais burro do que a mãe. É um verdadeiro jumento! – desabafou.
Acabei por saber, que o “velhote”, apesar dantes não se ter entendido muito bem com a mãe do “Bernardo”, agora, pior se entendia com o filho.
O Ti Inácio era um velhote patusco e engraçado; sempre com um sorriso de bom recepcionista estampado na face rosada, onde eram visíveis algumas carquilhas fundas, cavacadas pela idade. Mas era uma alegria conversar com lele, tinha sempre uma ‘stória p’ra contar.
- Eu já tenho dito ao “Bernardo”: olha lá, ó sua besta, eu falo p’ra ti e tu peidas-te? Daqui a pouco levas umas arrochadas no lombo, qu’até danças o berimbau. E o sacana, com cara de estúpido ainda se ri, azurrando mais alto. É a música que ele mais sabe, mas dá-me cabo dos ouvidos.
Também já lhe disse:
- Olha lá ó meu jerico, tu não vales merda nenhuma; qualquer dia és “rifado”. Então não é que o gajo levanta as patas e ia-me apanhando a “chachada”?! Tens a mania de dar nas vistas, mas eu ponho-te as palas de couro e aumento-te a taleiga.
- Se calhar sai ao pai - continuou. Bem, como há muitos burros aqui na terra, não sei qual deles é; mas mãe, a minha “Pinta”, (dizia com alguma saudade), nunca me fez desfeitas com as deste burro. Os burros novos, com o sangue na guelra têm a mania que sabem tudo, não é verdade?! Sabe, o “Bernardo” também não passa de um novato parvo e não assenta da cabeçada. Eu falo e ele não quer saber. Não me passa cartuxo.
Estava na hora de eu zarpar, que já se fazia tarde.
- É capaz de ter razão Ti Inácio; dessas bestas, o Sr. percebe mais do que eu.
- Olhe, obrigado por este bocadinho, mas está a anoitecer e eu tenho de ir embora.
- Então dê cá um chi-coração ao “Velho” Inácio – e abre os braços, com uma fisionomia de expressivo contentamento!
Lá os deixei; o “Velho” Inácio, mai’lo insolente e agressivo, burro “Bernardo”.
O tal filho da “Pinta”, que tem a mania de zurrar, não só ao dono, mas para toda a burricada lá do povoado.
Alimenta a pancada de qu’é gente – sentenças do Ti Inácio.

António Figueiredo e Silva
Coimbra, 06/06/2020


Nota:
                Procuro não fazer uso do AO90.


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