Nota:
Esta “paranóica” serradela, já
foi redigida há dezanove equinócios do Outono.
Com dignidade, vive o que puderes;
porque, por tardio que “embarques”,
será sempre cedo para morreres.
Lembra-te: a morte encerra as
oportunidades.
(António Figueiredo)
VIRTUALIDADE
TERRÍFICA
...E estava um frio
terrível!... Via pelo vidro de uma claraboia que o céu estava teimoso em abrir
e apresentava a sua opacidade cinzenta aos raios solares. Uma leve brisa
cortando laminarmente o aposento, abusivamente entrava pela porta entreaberta,
que propositadamente assim foi deixada para arejar o ar do pesado ambiente que
reinava no salão, pintado de lágrimas de verdadeiro e sincero pesar, e outras,
de hipocrisia e regozijo.
Eu ali estava,
deitado no esquife, de olhos semicerrados, com a barba aparada, todo
engravatado como se fosse para uma festa, com ar solene e com as mãos cruzadas
sobre o bucho – que outrora fora o meu paraíso de prazer - mas com todos os
sentidos apurados sem que ninguém o tivesse notado.
Lá vem um
papalvo que eu não me lembro de ter visto na vida, com cara de anjinho e
sobrancelhas símias, em arco, “os meus sentimentos, minha senhora”. É verdade
que nunca vi tal besta... deve ser daqueles que aproveita para dar aso às suas
taras necrófobas – pensei.
A minha mulher
e as minhas filhas, as únicas que me amavam a sério, lá se debulhavam em
lágrimas de sincero sentir. Coitadas!... - Pensava eu. Estou a ser chato, mas
deixa-me ver no que isto vai dar (?).
Lá vem outro
mancebo “tenham paciência que ele está em paz!” o sacana tinha acertado, pois
eu estava bem refastelado a gozar o panorama e sentia-me muito bem instalado,
apesar do frio que eu suportava perfeitamente.
Fora da sala,
alguns discutiam sobre política, enquanto outros contavam umas anedotas, pois a
hora era propícia para isso, além do mais, serviram para reforçar a ideia que
eu tinha a cerca das manifestações de pesar nos funerais, naturalmente
ressalvando algumas excepções. São uma cambada de hipócritas e vão lá para
fazer número, serem vistos, verem se tem muita gente e no fim fazerem os seus
pirosos comentários. Mas, há sempre quem compense.
“Até era uma
boa pessoa... um bocado nervoso, mas era boa pessoa”. Dizia um sabujo que um
dia me fez virar a cachimónia por não querer pagar o que me devia.
“O tipo até
deixou a família bem”. “O gajo tinha juízo na tola”. Argumentava outro
macambúzio que nunca tinha visto a minha conta bancária, nem sabia da minha
vida.
Nisto, aparece
o cangalheiro, com fingida fronha piedosa e ar de carpideira, - que não deseja
a morte a ninguém, mas não quer que lhe falte nada na vida, e acende as duas
velas eléctricas junto ao altar para daí a momentos se dar início ao ritual
fúnebre.
Apurei bem o
ouvido e ouço num discreto lamuriar, “olha que a viúva ainda tem boa aparência
e vais vê-la aperaltar-se toda e ainda arranja outro.” Ela até é bonita e
vistosa” dizia o outro cavalo. Eu bem me mordia com toda a situação, mas também
estava interessado em ver até onde ia o fundo da festa.
Também havia
pessoas sensatas. “Coitado!... Trabalhou muito!... Deu muito do seu couro
naquele café... formou as filhas, e é possível que tivesse deixado a vida
orientada... Foi pena ter ido tão cedo”!
Nisto, aparece
o padre, já caduco, a arrastar as pernas sob o peso da idade - que merecia
estar no meu lugar- para encomendar o corpo ao Criador, e talvez por correio
azul pois eu até era bom rapaz (?) – não sei para quê, mas cá na Terra é uso.
Muitas pessoas
deslocaram-se em silêncio para o interior do salão e outras ficaram lá fora em
amenas palestras. Vim a saber mais tarde, que houve um, que até fez um negócio
com um andar. Só faltou ali alguém a vender castanhas assadas, bolos de Ançã,
tremoços chocos e azeitonas podres.
...E os
ofícios começaram com uma benzidela... Quando finalizavam e o padre me espargiu
com água-benta, houve uns salpicos que me acertaram nos buracos do nariz e eu
dei um estrondoso espirro, que culminou na fuga em pânico de toda aquela gente
que me rodeava – padre e tudo - ficando só a minha mulher e as minhas filhas
que, admiradas com o fenómeno, mas contentes com o facto, agarraram-se a mim
chorando de alegria. Fui de imediato para casa tomar um reconfortável banho e
festejar a minha “ressurreição”.
O que me ficou
gravado na memória, foi quando eu ia passar pelas pessoas que tinham fugido, - algumas
até largaram os sapatos - à medida que eu andava, elas iam-se afastando. Uns,
olhavam-me com admiração, outros esbugalhavam os olhos, como se estivessem a
ver um fantasma. Até houve lá um marreco mais afoito, com umas cangalhas
encastradas num nariz adunco, cujas lentes mais pareciam fundos de garrafa de coca-cola,
que me veio apalpar p’ra ver se eu, era eu. Olhei para ele, e com uma
propositada carantonha, arregalei os olhos e fiz: puuum!!!... O homenzito
empalideceu de pavor, borrou-se todo, deu à sola largando os óculos e
esparrinhando a caganeira que lhe assomava aos fundos das calças pelo adro afora,
deixando o ar contaminado por um cheiro nauseabundo, ácido, misturado comum
odor ovos podres, e desapareceu grunhindo.
Foi
engraçado!... Desta escapei, mas já sei que da próxima é p’ra valer.
António
Figueiredo e Silva
Coimbra
16/09/2001
Sem comentários:
Enviar um comentário