quarta-feira, 20 de maio de 2020

PORQUE ESCREVO


Viver é lutar contra os demónios do coração e do cérebro.
 Escrever, é pronunciar sobre si o último julgamento.


PORQUE ESCREVO

É a única via que tenho de alar o meu pensamento e deixá-lo voejar até aos confins da tela do fantástico e ilimitado universo da ficção, onde posso divagar abertamente sobre a realidade pura e colher o benefício de poder pintá-la com as mais distintas cores da fantasia, que podem deleitar ou desgostar, a quem tem capacidade para compreender o sentido do seu efeito cromático.
Isto é estimulante, porque alcanço chegar aonde quero, com a subtileza e a suavidade de uma pomba ou a destreza de uma águia, de garras afiadas e certeiras, consoante o objectivo que me proponho alcançar.
É através da escrituração que se consegue universalizar o pensamento, catequizando-o, transfigurando-o e direcionando-o, para o bem ou para o mal.
A grafia, quando bem conduzida – é certo nem toda a gente está apta para ser cocheiro – pode fazer do Homem um pequeno ser divino, ou um infernal Diabo. Infelizmente, ele escusava de configurar o último critério; porém, é de todos notório, que a mentalidade humana engloba no seu todo, uma fracção indomesticada, onde a inconsciência é soberana; e quando essa leviandade assoma às ameias da torre do conhecimento mórbido, a tolerância esvai-se, ao toque sinistro das campanas do batalhão dos interesses mais nefastos espalhados por vários elementos da raça humana, cujas causas são sempre, sofreguidão de domínio e lazeira incontrolável de dinheiro. E o Homem sofre.
Gostaria eu, que a dissertação escrita, unicamente reportasse saberes do bem, embora reconheça que isso é fantasioso. É imaginário, na medida em que seria impossível o reconhecimento de um sem a existência do outro. A título de analogia; sabemos que existe o branco, perante a presença do preto.
Reconheço que talvez nem eu consiga executar com mestria, a proeza de saber escrevinhar, porque sou um producto imperfeito da Criação. A Natureza assim me concebeu com essa condição, mas bafejou-me com o sopro da resignação. Gosto de mim, tal como sou. É a lei da compensação natural. Eu compreendo, tudo fixe.
Neste meu mundo redactivo, em que a intimidade é ajustada por mim, o que mais bole comigo é ter sempre algo sobre o qual discorrer. É um espaço praticamente em constante ebulição neurológica, porém, com átimos de plena calmaria! Bestial! A serotonina descansa – e o meu ego, também!
Escrever é abissalmente diferente de dictar; as “palavras - como é usual dizer-se – leva-as o vento”, mas a escrita é sempre uma baliza de valor intemporal, porém, que cunha uma época determinada, independentemente do assunto em causa e reflecte o estado de meditação de quem, naquele momento redigiu.
O poder da escrita é imensamente grande! Pode aproximar ou estremar criaturas ou grupos, ser criminoso ou admissível, gerar ódios ou paixões, promover separações ou catalisar uniões, incitar a conflitos ou apaziguar ânimos exaltados, instigar à rebeldia ou convidar à obediência, transformar desavença em condescendência, fazer emergir a vida ou prover o finamento; a energia da sua possança não queda por aqui; a capacidade da escrita é de uma fortaleza tal, que pode dividir nações, juntá-las ou destruí-las.
Porém, é como tudo; para se chegar a algum lado, é definido começar-se pelo princípio. Existe quem não consiga fazê-lo, porque no espaço da escrita, “o seu início começa por baixo” e muitos, foram e continuam, “assolados por infernais dores nas cruzes”, outros, por razões várias, infelizmente, não foram bafejados pela oportunidade e outros não se deram ao trabalho de a procurar – este, o caminho mais curto para a atingir cegueira intelectual.
Com a minha expressão de que “o seu início começa por baixo”, pretendo referir-me a: alfabetização, leitura, compreensão e redacção. Seguidamente, é como a música, cada um dispõe os vocábulos como entende, para materializar a harmonia ou a discórdia que ambiciona – ou que não deseja!? – derivando daí, os vários estilos que podemos conhecer.
Subsiste, contudo, uma pequenina pedrinha de sal de ínfima dimensão, sem a qual a escrevinhança não tem sabor e muito menos, algum sucesso; a essa pedrinha de colorêto de sódio, chama-se dom. Sem este legado, berimbau!? Aqui, a questão fundamental, é que essa herança é genética e não pode ser comprada. É passível de ser facetada, polida e aprimorada, mas tem de o ser, antes de existir - um errante com as pernas cortadas, não pode caminhar; com elas poderá vir a ser um grande atleta.
Para concluir, este paradoxo: o Mundo material, por necessidade, criou o Mundo da escrita; por sua vez, a evolução desta, constrangeu o Mundo material, à semelhança de um satélite, a fazer o seu giro elíptico e a fluir em torno do Mundo da escrita, e não o inverso. O seu fundo, sem dimensão, é extraordinariamente aliciante e misterioso, pelo segredo que o circunda; desvendá-lo e transferir as cogitações para fora desse Universo místico, é privilégio de quem escreve. A escrita pode ser de cariz objectivo ou disfarçado. Este “disfarçado”, é para quem gosta e possui a capacidade de saber ler nas entrelinhas, onde está protegido o refúgio da realidade; a verdadeira essência da intocável implicitude da escrita. É a característica que dá origem às mais variadas interpretações, aos mais diversos conceitos, e, além de tudo, muitíssimas vezes determina a colocação da inocência no lugar da penalidade, quando alguma questão mais azeda, ranhosa e salmourada, é conduzida aos Sinédrios, que, apesar de muitas vezes uma escrevedura não explicitar uma verdade, porque ela está apenas implícita, esta, não deixa de o ser, aos olhos dos Doutores da Lei; porém, a força de prova fica de tal modo fragmentada, que e essa implicitude conquista o, “in dubio pro reo”. É frequente, não é?
Ora bem, como o sol já se pôs, só quero escrever mais “duas ou três” palavras: não é minha pretensão afirmar que o saiba fazer, contudo, a matéria que até aqui, por mim foi argumentada, sobejamente justifica a razão primeira, PORQUE ESCREVO.

António Figueiredo e Silva
Coimbra, 20/05/2020

Obs:
Não uso o AO90
 

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