sábado, 2 de maio de 2020

EU NÃO ACREDITO...


Reedição:
Crónica elaborada em:  02/03/2003,
tendo sido inerida em vários periódicos.


EU NÃO ACREDITO...
(Hipocrisia no mortório)


Na efusiva manifestação de pesar, consideração, amizade e admiração que tanta gente e gentinha pretende demonstrar, quando o desgraçado tem o céu da boca frio, as pálpebras cerradas e a cor da pele da sua cara e das mãos amarela e macilenta.
As palmas, que sempre foram uma manifestação de alegria e de gosto, um gesto de apreço, que por norma convidam a um bisar o espectáculo, pelo que vi, transformaram-se agora numa manifestação de pesar e tristeza – mas que vil rudeza!
E o féretero, muito quieto e em sentido, como que honrando a pátria que o viu nascer, “ouve” com serenidade toda aquela jorda de falsas palavras que os neurónios já não transmitem ao cérebro, e manifesta-se através da única forma que lhe resta. O silêncio sepulcral!...
Não acredito que toda a cambada que agora o bajula, elevando-o ao mais alto nível das virtudes terrenas, sinta integralmente aquilo que está fazendo e dizendo. Muitos, os mais artistas, choram copiosamente baba e ranho, enfeitando este ramalhete com uma expressão condoída e de sofrimento, previamente pensada e ensaiada para estas situações.
Não acredito que ele tenha sido tão bom, como à volta ouço dizer; nem tão insubstituível que fará parar o sistema do qual era uma engrenagem, e o seu lugar não seja habilmente preenchido. As “hienas”, a qualquer hora do dia ou da noite estão sempre à espera que haja mais um desafortunado que tombe e também sabem dar um ar da sua necrófaga graça choramingando – às vezes parecem rir.
São estas “hienas” que fazem o maior monte que acompanha aquele que não pode responder com corajoso sarcasmo e desprezo, àquilo que em vida os “amigos” e amigos, não foram capazes de lhe dizer.
Não acredito que onde houver “hienas”, não haja traição, inveja, malvadez e ganância.
Amortalhado, com as tampas do “esquife” bem fechadas – não vá ele ressuscitar e desmascarar toda aquela trampolineira cena -  e um pano preto ou roxo debruado com penduricalhos dourados ou uma bandeira por riba, para imprimir mais solenidade ao “evento”, quando o que ele se calhar desejaria eram duas ou três folhas de couve como mortalha, meia dúzia de verdadeiros amigos a acompanhá-lo e a família mais chegada.
As coisas são assim e não as podemos mudar. Resta-nos apenas a hipótese de as podermos criticar. O que já não é mau!
Todavia, eu não acredito na veracidade do sentimento das palavras e na coesão da unicidade dos gestos e salamaleques dos amigos, falsos amigos e inimigos, para “santificarem” depois de morto, um ser que aterraram em vida. Que mórbida imbecilidade!
Não, eu não acredito!


António Figueiredo e Silva
Coimbra





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