Reedição:
Crónica elaborada em: 02/03/2003,
tendo sido inerida em vários periódicos.
EU NÃO ACREDITO...
(Hipocrisia no mortório)
Na efusiva manifestação
de pesar, consideração, amizade e admiração que tanta gente e gentinha pretende
demonstrar, quando o desgraçado tem o céu da boca frio, as pálpebras cerradas e
a cor da pele da sua cara e das mãos amarela e macilenta.
As palmas, que
sempre foram uma manifestação de alegria e de gosto, um gesto de apreço, que
por norma convidam a um bisar o espectáculo, pelo que vi, transformaram-se
agora numa manifestação de pesar e tristeza – mas que vil rudeza!
E o féretero,
muito quieto e em sentido, como que honrando a pátria que o viu nascer, “ouve”
com serenidade toda aquela jorda de falsas palavras que os neurónios já não
transmitem ao cérebro, e manifesta-se através da única forma que lhe resta. O
silêncio sepulcral!...
Não acredito
que toda a cambada que agora o bajula, elevando-o ao mais alto nível das
virtudes terrenas, sinta integralmente aquilo que está fazendo e dizendo.
Muitos, os mais artistas, choram copiosamente baba e ranho, enfeitando este
ramalhete com uma expressão condoída e de sofrimento, previamente pensada e
ensaiada para estas situações.
Não acredito
que ele tenha sido tão bom, como à volta ouço dizer; nem tão insubstituível que
fará parar o sistema do qual era uma engrenagem, e o seu lugar não seja habilmente
preenchido. As “hienas”, a qualquer hora do dia ou da noite estão sempre à
espera que haja mais um desafortunado que tombe e também sabem dar um ar da sua
necrófaga graça choramingando – às vezes parecem rir.
São estas
“hienas” que fazem o maior monte que acompanha aquele que não pode responder
com corajoso sarcasmo e desprezo, àquilo que em vida os “amigos” e amigos, não
foram capazes de lhe dizer.
Não acredito
que onde houver “hienas”, não haja traição, inveja, malvadez e ganância.
Amortalhado,
com as tampas do “esquife” bem fechadas – não vá ele ressuscitar e desmascarar
toda aquela trampolineira cena - e um
pano preto ou roxo debruado com penduricalhos dourados ou uma bandeira por riba,
para imprimir mais solenidade ao “evento”, quando o que ele se calhar desejaria
eram duas ou três folhas de couve como mortalha, meia dúzia de verdadeiros
amigos a acompanhá-lo e a família mais chegada.
As coisas são
assim e não as podemos mudar. Resta-nos apenas a hipótese de as podermos
criticar. O que já não é mau!
Todavia, eu
não acredito na veracidade do sentimento das palavras e na coesão da unicidade
dos gestos e salamaleques dos amigos, falsos amigos e inimigos, para
“santificarem” depois de morto, um ser que aterraram em vida. Que mórbida
imbecilidade!
Não, eu não
acredito!
António
Figueiredo e Silva
Coimbra
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