O medo é o pai da
moralidade.
A "JUSTIÇA
DE NAPOLEÃO”
A
violência contra a mulher, seja cometida dentro do espaço familiar ou em outro
lado qualquer, devia ser punida com inflexível severidade, de maneira a evitar ao
máximo, o recurso ao afastamento ou mesmo à clausura “hoteleira”, que fica cara
aos contribuintes. Para isso devia ser decretada a ressurreição da lei-do-cassetete.
Então, para os cobardolas sádicos mais
renitentes, trabalhos forçados durante uma considerável temporada – consoante a
repetência e/ou a gravidade dos actos -
tendentes a custear a sua estadia no “hotel”, sem direito algum a
reclamar da paparoca, ver televisão ou ter acesso a outras vias noticiosas,
praticar todos desportos e proibição de receber visitas; esta última também
sansão, mantida durante todo o cativeiro, a menos que as lesadas - que também
as há masoquistas - optem por ver a fuça do seu agressor – aí já será um
problema delas.
De certeza que a percentagem de atentados
à integridade da mulher, iria baixar consideravelmente.
Há muitos anos, ainda eu rondava a casa
dos trinta e tais, conheci um Sr., já de avançada idade, que era reformado da
GNR - quando este organismo tinha pujança, não obstante, alguns elementos
abusarem dela – e, através duma continuidade de troca de palavras em sóbrias
cavaqueiras de café, tornámo-nos amigos, selando com o tempo, um arco de confiança
entre nós, que permitia uma mútua e alargada abertura para os nossos desabafos.
O
Sr. Napoleão! – era mesmo o seu nome
de baptismo.
Uma figura de bem constituído arcabouço,
muito rectilíneo nas suas apreciações, preciso nas decisões e severo nos
castigos que aplicava ou ordenava que fossem aplicados – no posto onde foi
chefe, até tinha lá um quartinho, - disse-me - servia de confessionário e
também era destinado aos “tratamentos”.
Contudo, pela sua maneira de pensar, pelas
histórias que me contava e pelas reacções de condescendência ou castigo em
relação a determinados factos, eu notava que era uma pessoa honrada, clemente e
moralista; porém, quando lhe passasse pelas mãos algum caso que necessitasse
ser diluído por uma valente sova com recurso a uma vacina de cavalo-marinho
(sua expressão), não era nada condescendente nem meigo.
Das várias ocorrências que por ele
passaram, contou-me uma, que mais à frente descrevo, e que vincou para sempre
na minha memória, a figura alta, austera, calma, e respeitadora, do Sr. Napoleão,
que hoje, certamente dorme em paz, à sombra do eterno descanso.
Naquele tempo, muita miséria banhava
Portugal, por causa do rescaldo da Segunda Guerra Mundial – agora também há,
mas é uma indigência diferente – e era habitual muitos afogarem os desaires no
tintol e a inconsciência trepava-lhes à mona, como é natural, quando os vapores
etílicos começam a produzir os seus efeitos no sistema nervoso central e nos
canais semicirculares do ouvido interno.
Aconteceu
que numa localidade onde este Sr. foi Chefe de Posto - agora não me recordo da
terra - certo dia apareceu lá, uma Sra. a prantear, mãe de uma prole algo
numerosa, (o que era habitual, porque ainda não havia aparecido a televisão),
com várias equimoses e a sangrar da cabeça, queixando-se de que o seu “home”, toldado por valente “borratcheira”, sem mais nem p’raquê, a
havia posto naquele estado, e em frente dos filhos. Que também apanharam algumas, por tabela – disse.
E, continuando:
-
Bem, mandei uma patrulha ir à sua cata e trazê-lo para o posto.
-
Quando chegou, ao vê-lo, logo reconheci a bêsta; olha quem é!
Disse-me o Sr.
Napoleão, que ele era um desequilibrado e um mandrião, que
preferia consumir todo o seu tempo em adoração à pipa, do que a zelar pelas
suas obrigações, como um patriarca que se preze; era a coitada da mulher, que,
à jorna e com a caridosa ajuda dos vizinhos, lá ia equilibrando a vida com os parcos
tostões que ia ganhando, a esgravatar do nascer ao pôr-do sol, para sustento familiar
e para os púcaros do tintol, vício do seu marido e agressor, cujo agradecimento
era… porrada no lombo.
-
Quando entrou no meu gabinete, de chapéu na mão e cabeça baixa, já tremia como
um bancilho. Olhei p’ra ele com ar severo, passei-lhe um raspanete criticando o
seu comportamento em nada exemplar para os filhos e para os vizinhos, e dei-lhe
uma lição de moral, fazendo-o lembrar de que ele era um chefe a família. No
fim, adverti-o de que, se igual situação se voltasse a repetir, o bater na mulher
e nos filhos, que bem podia contar que as coisas não ficariam assim.
- E então? – perguntei.
-
Olhe; - disse-me com a sua quietude habitual; andou uns tempos na linha, mas depois voltou
a cair na mesma patetice; zumbou novamente na mulher e nos filhos.
-
Lá me pareceu outra vez a Sra. no Posto, a choramingar e bem pisada na cara e
nos braços, com um pequeno, que devia ser o mais novo, agarrado ao avental.
-
Apossou-se de mim, uma revolta tão grande, tão grande, de raiva e de dó, que
nem imagina!
- Então e qual foi a sua reacção?
-
Fiquei p’ra morrer. Dei ordens a uma patrulha para o ir contactar e trazê-lo à
minha presença. Assim que o encarei, nem lhe disse nada. Nunca fui amante em
dar ensinamentos à porrada; mas virei-me para um subalterno e disse-lhe: leva
esse gajo ali ao quarto, fecha a porta e dá-lhe uma lição de bom tratamento de
maneira a que ele nunca mais se esqueça; para ver se desta vez ele toma juízo.
-
Olhe… ele bem “dançou”! Tal foi a dança, que saiu dali p´ró hospital fazer uns
curativozitos a umas mazelas. – Concluiu, com ténue
ironia.
E completou:
-
Isto hoje é uma rebeldaria! Não há respeito por ninguém; nem quem o imponha –
frisou.
-
Mas também lhe digo; a lição foi tão bem dada, que nunca mais se meteu noutra,
e, ao que consta, ganhou juízo naquela cabeça.
Agora digo eu: é de “músicas” e “danças”
de comprovada qualidade como esta, que os covardes e sádicos agressores da
mulher, carecem.
A
“JUSTIÇA DE NAPOLEÃO”.
António Figueiredo e Silva
Coimbra,13/05/2020
Obs:
Não
uso o AO90.
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