quarta-feira, 13 de maio de 2020

A "JUSTIÇA DE NAPOLEÃO"


O medo é o pai da moralidade.

A "JUSTIÇA DE NAPOLEÃO”

A violência contra a mulher, seja cometida dentro do espaço familiar ou em outro lado qualquer, devia ser punida com inflexível severidade, de maneira a evitar ao máximo, o recurso ao afastamento ou mesmo à clausura “hoteleira”, que fica cara aos contribuintes. Para isso devia ser decretada a ressurreição da lei-do-cassetete.
Então, para os cobardolas sádicos mais renitentes, trabalhos forçados durante uma considerável temporada – consoante a repetência e/ou a gravidade dos actos -  tendentes a custear a sua estadia no “hotel”, sem direito algum a reclamar da paparoca, ver televisão ou ter acesso a outras vias noticiosas, praticar todos desportos e proibição de receber visitas; esta última também sansão, mantida durante todo o cativeiro, a menos que as lesadas - que também as há masoquistas - optem por ver a fuça do seu agressor – aí já será um problema delas.
De certeza que a percentagem de atentados à integridade da mulher, iria baixar consideravelmente.
Há muitos anos, ainda eu rondava a casa dos trinta e tais, conheci um Sr., já de avançada idade, que era reformado da GNR - quando este organismo tinha pujança, não obstante, alguns elementos abusarem dela – e, através duma continuidade de troca de palavras em sóbrias cavaqueiras de café, tornámo-nos amigos, selando com o tempo, um arco de confiança entre nós, que permitia uma mútua e alargada abertura para os nossos desabafos.
O Sr. Napoleão! – era mesmo o seu nome de baptismo.
Uma figura de bem constituído arcabouço, muito rectilíneo nas suas apreciações, preciso nas decisões e severo nos castigos que aplicava ou ordenava que fossem aplicados – no posto onde foi chefe, até tinha lá um quartinho, - disse-me - servia de confessionário e também era destinado aos “tratamentos”.
Contudo, pela sua maneira de pensar, pelas histórias que me contava e pelas reacções de condescendência ou castigo em relação a determinados factos, eu notava que era uma pessoa honrada, clemente e moralista; porém, quando lhe passasse pelas mãos algum caso que necessitasse ser diluído por uma valente sova com recurso a uma vacina de cavalo-marinho (sua expressão), não era nada condescendente nem meigo.
Das várias ocorrências que por ele passaram, contou-me uma, que mais à frente descrevo, e que vincou para sempre na minha memória, a figura alta, austera, calma, e respeitadora, do Sr. Napoleão, que hoje, certamente dorme em paz, à sombra do eterno descanso.
Naquele tempo, muita miséria banhava Portugal, por causa do rescaldo da Segunda Guerra Mundial – agora também há, mas é uma indigência diferente – e era habitual muitos afogarem os desaires no tintol e a inconsciência trepava-lhes à mona, como é natural, quando os vapores etílicos começam a produzir os seus efeitos no sistema nervoso central e nos canais semicirculares do ouvido interno.
 Aconteceu que numa localidade onde este Sr. foi Chefe de Posto - agora não me recordo da terra - certo dia apareceu lá, uma Sra. a prantear, mãe de uma prole algo numerosa, (o que era habitual, porque ainda não havia aparecido a televisão), com várias equimoses e a sangrar da cabeça, queixando-se de que o seu “home”, toldado por valente “borratcheira”, sem mais nem p’raquê, a havia posto naquele estado, e em frente dos filhos. Que também apanharam algumas, por tabela – disse.
E, continuando:
- Bem, mandei uma patrulha ir à sua cata e trazê-lo para o posto.
- Quando chegou, ao vê-lo, logo reconheci  a bêsta; olha quem é!
Disse-me o Sr. Napoleão, que ele era um desequilibrado e um mandrião, que preferia consumir todo o seu tempo em adoração à pipa, do que a zelar pelas suas obrigações, como um patriarca que se preze; era a coitada da mulher, que, à jorna e com a caridosa ajuda dos vizinhos, lá ia equilibrando a vida com os parcos tostões que ia ganhando, a esgravatar do nascer ao pôr-do sol, para sustento familiar e para os púcaros do tintol, vício do seu marido e agressor, cujo agradecimento era… porrada no lombo.
- Quando entrou no meu gabinete, de chapéu na mão e cabeça baixa, já tremia como um bancilho. Olhei p’ra ele com ar severo, passei-lhe um raspanete criticando o seu comportamento em nada exemplar para os filhos e para os vizinhos, e dei-lhe uma lição de moral, fazendo-o lembrar de que ele era um chefe a família. No fim, adverti-o de que, se igual situação se voltasse a repetir, o bater na mulher e nos filhos, que bem podia contar que as coisas não ficariam assim.
- E então? – perguntei.
- Olhe; - disse-me com a sua quietude habitual; andou uns tempos na linha, mas depois voltou a cair na mesma patetice; zumbou novamente na mulher e nos filhos.
- Lá me pareceu outra vez a Sra. no Posto, a choramingar e bem pisada na cara e nos braços, com um pequeno, que devia ser o mais novo, agarrado ao avental.
- Apossou-se de mim, uma revolta tão grande, tão grande, de raiva e de dó, que nem imagina!
- Então e qual foi a sua reacção?
- Fiquei p’ra morrer. Dei ordens a uma patrulha para o ir contactar e trazê-lo à minha presença. Assim que o encarei, nem lhe disse nada. Nunca fui amante em dar ensinamentos à porrada; mas virei-me para um subalterno e disse-lhe: leva esse gajo ali ao quarto, fecha a porta e dá-lhe uma lição de bom tratamento de maneira a que ele nunca mais se esqueça; para ver se desta vez ele toma juízo.
- Olhe… ele bem “dançou”! Tal foi a dança, que saiu dali p´ró hospital fazer uns curativozitos a umas mazelas. – Concluiu, com ténue ironia.
E completou:
- Isto hoje é uma rebeldaria! Não há respeito por ninguém; nem quem o imponha – frisou.
- Mas também lhe digo; a lição foi tão bem dada, que nunca mais se meteu noutra, e, ao que consta, ganhou juízo naquela cabeça.  
Agora digo eu: é de “músicas” e “danças” de comprovada qualidade como esta, que os covardes e sádicos agressores da mulher, carecem.
A “JUSTIÇA DE NAPOLEÃO”.

António Figueiredo e Silva
Coimbra,13/05/2020
Obs:
Não uso o AO90.

     

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