alimenta, mas não sustenta.
(Du
Amaral)
“MILAGRES” DA "VIRTUALIDADE”
Para
muitos, os visores dos dispositivos de comunicação audiovisual assemelham-se a
um deus! Passam horas sem fim a olhar para aquele espaço, deserto de conteúdo,
mas cheio de quimeras, com caras de camelo pachorrento a ruminar coisas-e-loisas
no vazio infinito que ultrapassa o limite da sua percepção sensorial;
inteligentes ou meras burrices, constructivas ou destructivas, sérias ou
aldrabadas, ridículas ou aprimoradas; a rir ou a chorar, sabe-se lá de quê; a
mimicar com execuções de gestos ameaçadores, interrogadores ou sem nexo algum. Há
de tudo. Saibamos nós observar, quando o diálogo está em cena. Algumas
criaturas assemelham-se a tolinhos varridos, que, sem darem conta disso, estão
abstraídos do mundo que os rodeia. Isto em conversas rotineiras, porque quando
passam ao facebook, as coisas tomam outra dimensão. Não a dimensão abstracta de
impunidade (enganosa). Julgam que estão sós e podem dizer tudo, desde as
palavras mais subtis e mais polidas aos vocábulos mais asquerosos e ofensivos.
Porém, as coisas não funcionam dessa forma; há sempre olhos atentos a observar,
prontos a elogiar ou a condenar as ultrapassagens do risco contínuo. Isto é
assim.
É sobre aqueles ecrãs luminosos, que
muitos descarregam as suas tristezas ou alegrias, realidades ou meras
fanfarronices, instantes de lazer ou afazeres, comichões piolheiras ou dores na
cachimónia; enfim, um sem número de meros desabafos ou queixumes, que lhes
empanturram o pensamento, com o objectivo de que o mundo inteiro tenha
conhecimento do seu estado de espírito, como se ele estivesse penhorado em
saber das mazelas, alegrias ou tristezas de cada um.
Aqueles ecrãs suportam uma infinidade de atributos:
servem de confessores, polícias, juízes, advogados, psiquiatras, veterinários,
videntes, e, além de mais, ainda servem de alfurja onde se põe a enxugar a
roupa mal lavada, ainda um pouco conspurcada pela sujidade da linguagem; servem
também de sepulcro para pensamentos já desactualizados, repletos de teias de
aranha, bafientos e com bolor, que várias mentes assimilam como pertença da
actualidade. Néscios! Estúpidos, porque não sabem fazer a filtragem da
realidade e raciocinam que tudo o que lhes aparece na manjedoura é palha da
boa.
À parte disso, são também um manancial elucidativo
de conhecimentos, que permitem uma avaliação com escassa margem de erro, do
comportamento humano e do seu estado de espírito em determinados momentos,
mostrando que podem virar de direcção em função das inconsequentes variações
provocadas por acções exógenas que lhe afectam a visão racional.
Ali são dispostos à mercê de quem quer,
queixumes, mágoas, revoltas, desavenças, paixões falhadas, manifestações de
burrice e esperteza, do mais variado género; infâmias de toda a casta, manifestos
de ostentação e choraminguices, reais ou fingidas; tantos, fazem questão de
darem a conhecer os acepipes que papam - nem que seja uma vez por festa - onde
estiveram e para onde vão passarinhar; quantas vezes foram à latrina aliviar inoportunas
borras diarreicas, musicalizadas com um peidinho em tom sublime de clarinete ou
cavernoso de trombone, “irrigadas” com uma impertinente mijinha, que a bexiga, apoquentada,
intima a escoar.
Também
se tornou rotineiro, pelo menos, na raça lusitana, o recurso ao uso e abuso,
compulsivamente doentio, de pirosas frases soltas, rebuscadas num português
amacarronado, que não prima pela pureza do nosso idioma – que não tem nada a ver
hioderno AO90 - com as quais, com
profundo deslumbramento se identificam! Tais como: “Se você paga, não fica a dever”; “Se você sabe que três mais dois são
cinco, se juntar mais um é meia dúzia”; “Se você teima em fechar a boca, a
mandioca não entra”; “Se eu te amei é porque você m’amou também”; “Se pensa que
bumbum é traseiro, se engana… é som de tambor de choque”; “você foi a minha
vida inteira, mas eu... fui só um capítulo da sua... eu te amo” – até ver,
digo eu; “a gente briga, a gente se ama,
a gente vai e a gente volta. A gente é da gente e da gente ninguém tira” -
quer-me parecer gente a mais!?
Existe outra pilha gente, talvez o maior
quinhão, que auto-evidencia com extrema exuberância e satisfação, uma alegria e
uma felicidade, com tal magnitude na sua repetição, que chego a ponderar, se
não será precisamente o reflexo negativo da outra face da moeda – mas, se são
felizes assim, ainda bem.
Sobrevive uma outra parte de seguidores,
que peregrinam, com alguma puerilidade temperamental, ou talvez uma camarinha
de inocência, para contemplarem bajulados na tela luminescente, que convida a
dar uns “clics” em determinadas
janelas aliciantes, como; “clicar” no
signo, postarem o nome, colocarem a data de nascimento, saberem quem foram numa
vida anterior, como será quando chegar aos cem anos, etc. para sentirem o
borbulhar do narcisismo, ao verem-se brindadas
com foleirices de fingido apreço, como; “é a mais bonita e mais inteligente do mundo”
– às vezes com cara de penico e se adrega, “burra” como uma porta; “é meiga, amorosa e com bom coração” –
nunca se sabe a fera que ali está e quantos enfartes já apanhou; “Na vida passada, foi Catarina da Rússia, A
Grande”, etc. - nunca vi nada relacionado a figura de uma rameira, filha de um palafreneiro ou de um
bobo da corte; “aos cem anos – mostra
a “realidade” intrujada com fotografia –
serás ainda tão bela que farás cair todos os machos a teus pés” – principalmente aqueles a
quem os dentes já caíram e se vêm incapazes de trincar bife de uma alcatra de
tão elevada dureza, onde as peles são o principal entrave para as gengivas, por
muito calejadas que sejam.
E
assim vai ambulando o mundo da virtualidade, onde tudo é possível – para quem
se deixa transportar para o reino da “ilusão”, onde a realidade é relativa.
Só
faltava mais esta “maluqueira”, não é verdade?!
António
Figueiredo e Silva
Coimbra,
27/04/2020
Nota: não uso o AO90
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