segunda-feira, 13 de abril de 2020

A "PASSAGEM"


Para quê preocuparmo-nos com a morte?
A vida tem tantos problemas que temos
de resolver primeiro.
(Confúcio)

A “PASSAGEM”
(Pensamentos de um tolo)


O HOSPITAL, quando bem apetrechado, é o último recurso que nos resta antes da morte, sempre que ela não apareça de surpresa, mas quando ela dá sintomas de querer manifestar a sua misteriosa aparição.
Os achacados que têm a ventura de lá entrar, aos ais ou abananados - dependendo da moléstia que os atormenta - nunca podem prever se a porta de saída vai ser a mesma por onde entraram, ou se irão sair pela porta posterior, “gentilmente” brindados com uma rolha a bloquear-lhes o esfíncter, para não conseguirem mais desfrutar do gozo de dar um fedorento “píu”. Um facto é garantido: sair, saímos sempre - nem que a porca tussa. Isto porque estes organismos existem para socorrer, e, na medida do possível, alongar a existência e não para dar garantias da prossecução da mesma - como muita gente pensa.
Uma coisa é certa; se sairmos pelas traseiras, é uma “oportunidade” da qual só desfrutamos uma única vez, porquanto ela jamais se repetirá. Se sairmos por onde ingressámos, ainda podemos ter grandes hipóteses de suportarmos de novo os conflitos deste mundo-cão que obrigatoriamente íamos abandonar, corroído pela intolerância e avidez selvagens, que a todo o custo persistem em roubar o sossego da nossa fracção emocional, com exigências alarmistas que por vezes o estado de espírito e a moral humana não comportam; somos extorquidos, tosquiados, por uma nata de mafarricos que só olham para o seu umbigo. No entanto, todos pugnamos pela vida, por muito espinhosa que ela possa ser. Embora eu não compreenda, ou não queira entender, as coisas funcionam deste modo.
Mesmo aqueles a quem tudo foi espoliado, ou que eles próprios devastaram mercê de uma ânsia doentia de mostrar o que não eram, e estão de ”tanga”, com a carcaça da intelectualidade já desarticulada, coberta apenas pelo coiro do desânimo, fazem tudo para sobreviver. Parece não fazer sentido, porém, é verdade.
Ainda não consegui perceber muito bem, o porquê do estado comportamental que incita o ser humano a lutar pela sobrevivência, quando a vida, por vezes lhe é tão hostil. É inquestionável que ela o presenteia com bastantes coisas boas, todavia, que podem ser arrebatadas ou destruídas por ambição própria ou alheia, convertendo-a numa vivência sem sentido. Quando essa condição é atingida, não vejo porque valha a pena viver. O certo é que, mesmo não tendo nada, agarra-se a ela com unhas e dentes até à última “convulsão”. Uma ilusão que não consigo explicar.
A existência é uma realidade repleta de mistérios, porém, que poucos gostam de perder. A vida é, por Natureza, agarrada a uma filosofia socialista que se resume em oferecer-nos uns parcos momentos de prazer, que ela usa como engodo no propósito de preservar a continuidade, para depois lhe serem compulsivamente restituídos sem apelo nem agravo, quando ela entende que chegou o momento da cobrança. O fim estabelecido pela Criação. No entanto, estou convencido de que ela se resume a uma “momentânea” passagem que num instante esquecemos; da mesma maneira que também não nos lembramos de ter nascido.
Esta dualidade de critérios parece diferente, mas acaba por ser é igual. Um princípio, indiscutivelmente, vislumbra sempre um fim. Além disso esquecemo-nos de que vamos morrendo a cada minuto que passa; esse minuto é um factor contabilizado pela Natureza, que entra como um débito a saldar no fim do trajecto percorrido, seja qual for o comprimento da sua natureza temporal.
O ser humano vive uma ilusão faraónica; por isso faz tudo o que pode sem olhar a meios, para atingir a supremacia no poder e na fortuna, enquanto par cá vagueia, deitando para trás das costas uma certeza.  A certeza de que tudo cá fica; o princípio e o fim, aparentam estar distantes, mas na realidade andam juntos, no caminho que nos é dado percorrer e a linha que os divide é paradoxalmente inexistente.
Na outra banda, que não sei onde é, não existe concorrência; não há intercâmbio comercial nem económico; o dinheiro acumulado (um ganho outro roubado), as medalhas (daqueles que nunca estiveram na luta), as cunhas (para os incompetentes), não representam qualquer valor. É por esta razão que posso afirmar que a morte é pobre, mas nobre, porque não nos rouba nada. É uma circunstância inexplicável que acontece só uma vez, e apenas pode extorquir uma coisa. A vida.
O resto, cá fica - até o hospital e tudo.
FIM DO “TRAJECTO”.

António Figueiredo e Silva
Coimbra, 13/04/2020
Nota:
Procuro não fazer uso do AO90.


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