sábado, 28 de março de 2020

O PENSAMENTO DE UM MORCÊGO


“A imprudência e a negligência têm gerado
 a conta mais marga que o ser humano tem
 pago ao longo da sua história”.
(Carlos Alberto Hang)

PENSAMENTOS DE UM MORCÊGO
 Мысли о летучей мыши
THOUGHTS OF A BAT
蝙蝠的思想


Mesmo de cabeça para baixo, eu medito como qualquer outro ser vivo. Sei que ninguém acredita, mas a mim pouco me interessa. Tenho a noção de que sou feio, dizem meto asco, que com a minha merda infecto tudo por onde passo e consideram-me perigoso. Tudo isso é falso. Os meus filhinhos são bonitos; dizem que sou repugnante, mas há muitos que me comem – até me esfolam vivo se for preciso; a merda que defeco nas minhas acrobáticas passagens ou na escuridão sossegada do meu lar, ajeitado a um canto de numa húmida, escura e insalubre gruta, apanham-na às pasadas e ensacam-na, uma vez que é rica em nitrato, um bom fertilizante para as plantações, quem o transformam produtos comestíveis que vão garantir a sobrevivência dos humanos, meus perseguidores - muitos, devoradores insaciáveis de morcêgos.
Não faço mal a ninguém. Talvez sintam que dou mau augúrio, porque só saio noite para trabalhar, e deste modo poder aleitar a minha prole que é numerosa e está sempre impaciente e faminta, de boca pronta a abrir-se à espera de abocanhar a minhas têtas, para sentirem a vitalidade macia do leite entrar-lhes pelas goelas abaixo. O meu alimento, que já sou adulto, não passa de mosquitos e traças. Sei que existem outros da minha raça, que gostam do néctar de flores, frutos, sementes, pólen, pequenos vertebrados e peixes.; não ignoro outros parentes, que são hematófagos, e normalmente chupam o sangue de animais, quando estes relaxam durante a noite; contudo, isso não lhes causa a morte. Esses meus semelhantes, no fundo, até são inofensivos e boa rapaziada.
É provável que a minha raça seja transportadora de doenças perigosas – como já ouvi dizer - mas o ser humano é capaz de ter mais quinquilharia infecciosa do que a minha parentela. Ele é que, com a sua parvoíce e as suas invenções tolas e descabidas, tem degredado toda a existência de vida na terra. Não foi a minha estirpe, não!?
Saio ao anoitecer porque é o período do dia em que a carência do sol se manifesta e essa bicharada minúscula de que me alimento, voa desorientada na escuridão, por falta da luz ultravioleta emanada pelo astro-rei, a sua bússola orientadora.
Os humanos ficam perplexos pela ligeireza com executo que minhas manobras na escuridão, sem recurso a qualquer lampião ou outra espécie de luzência; é verdade. A Natureza ofereceu-me um sofisticado sistema de “radar”, com o qual emito ondas ultrassónicas de alta frequência, em forma de silvo, que só eu consigo escutar, e que, ao colidirem com um obstáculo, por muito pequenino que seja, o seu “eco” faz ricochete e volta aos meus ouvidos, dando-me a sua direcção e distância. É este o segredo de eu não carecer de luminárias, lamparinas nem lanternas chinesas (?...) para voar na escuridão cerrada sem embater nos obstáculos e fazer os “safaris” destinados à colheita dos nutrientes, para a minha subsistência e dos meus. Quero frisar, que nas minhas rápidas caçadas, quando se trata de seres vivos, sou diferente dos humanos; trucido apenas o suficiente para me alimentar, enquanto que os humanos matam e exterminam por prazer patológico.
Posso afirmar que sou inofensivo, apesar da minha aparência, que dizem ser agressiva, medonha e arrepiante.
Tenho pena, mas não posso fazer nada; a Natureza assim me criou e assim tenho que viver. Mas vivo contente com compleição que tenho. Apesar haver diferentes espécies na minha raça, observo que todos são unidos; sei que o seu número de elementos é elevado, contudo, qualquer cantinho para descanso é repartido com imparcialidade por toda a comunidade morcegal.
É uma lição que os humanos deviam aprender.
Agora, os humanos, vítimas de uma imprudência sua, querem culpar-me de ter sido eu portador de um ácido maligno qualquer, que os está a liquidar letalmente; chamam-lhe, qualquer coisa como Corona Vírus, COVID-19, ou qualquer coisa parecida. O seu desleixo deve ter sido de tal magnitude, que vendou os olhos à sua compreensão, fazendo-o perder o controlo à propagação da mixordice que fabricou.
 Por causa disso, eu e fui eleito para saldar o atrevimento do ser humano em petiscar-me ou/e “sugar-me” algum ácido para transverter numa arma química estratégica destinada a fazer uma depuração demográfica na sua raça, por razões até agora não provadas, porém que se integram dentro de uma lógica que não sei bem expor. 
Eu não tenho culpa dessa catástrofe; deve ser um “arranjinho” levianamente propositado e mixordado nos seus cubículos de alquimia e que deu mau resultado, ou mais do que o resultado pretendido, escapando assim ao seu domínio.
Agora, confinados a uma vida monástica, arrebunham a mioleira, e, sem saberem o que fazer, resolveram atirar as culpas para cima de mim, que não tenho culpa nenhuma.
Deixem-me continuar a abrir as minhas membranas alares, a fazer as minhas acrobacias noctívagas e a dar o meu modesto contributo para o equilíbrio da vida neste planêta azul, que navega, não com que destino, pela imensidão espaço cósmico.
Os HUMANOS que tenham juízo.

António Figueiredo e Silva
Coimbra,28/03/2020

Nota:
Não uso o AO90




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