domingo, 22 de dezembro de 2019

"HISTÓRIA" NATALÍCIA


Imagina o filho que queres ter,
para imaginares o pai que deves ser”.
(Moisés Doxos)
”HISTÓRIA” NATALÍCIA
(A prenda)


Meados de Dezembro. A temperatura era baixa e vergastada por um ventinho cortante que já fazia arrefecer as pontas das orelhas e dava uma côr vermelha apalhaçada à ponta do nariz, enquanto um pingo renitente esperava o meu descuido, que não deixei adormecer. 
Tudo isto, senão mais, para lembrar de que é época natalícia, em que as pessoas aparentam ser mais dóceis – ou fingem -  e igualmente permeáveis ao sentimentalismo, que durante o ano lhes passou de raspão.
O céu estava com cara de poucos amigos, pintado de com uma tonalidade cinzento-escuro, afirmando a sua gana em descarregar umas presumíveis bátegas de água destilada, para molhar os incautos, refrescar os miolos aos “burros” e tornar  viçosas e mais tenras as hortaliças destinadas à consoada, o complemento habitual do fiel amigo, naquela noite imprescindível, (para quem pode) onde, além da lareira, a ceia é marcada pelo afectuoso aquecimento do agregado familiar –  por infortúnio há quem o não consiga - reunido à volta de uma mesa (nova ou velha não interessa), em que o tempero principal é a manifestação radiante de contentamento entre os presentes.     
Ainda não era meio-dia, mas já o meu estômago roncava danado a pedir adiantada, a costumeira “receita” do meio dia (o almoço). Nesse dia não iria ter sorte, porque, como não me encontrava em casa, ponderei enganá-lo com qualquer coisa mais frugal, como uma torrada ou um pastel qualquer, para lhe mitigar o seu nervosismo por algum tempo.
 Tinha acabado de estacionar a minha “chicolateira” e deslocava-me em marcha vagarosa com destino ao café lá do meu burgo, situado num dos rossios mais afamados da minha parvónia, de que distava uns metros do parqueamento.
 Ia absorto com as minhas meditações, quando sinto que alguém me toca ao de leve nas costas e me fez descontinuar a marcha.
Viro-me e contemplo com inusitado espanto e alegria, uma criatura que já não via há longo tempo - mais propriamente há uns anos. Fiquei eufórico de exultação – por vezes também há surpresas agradáveis na vida.
Fico extasiado ao vê-la, agora com a florida idade de catorze ou quinze anos. A sua fisionomia pouco ou nada mudou. Os olhos continuavam com o mesmo brilho de quando era mais criança; eram duas pérolas azúis como o céu, a marcarem a face angelical adornada por uns cabelos loiros como os trigais no verão; apresentava o mesmo sorriso simples, mas vistoso, de quando era mais menina; muito calma e reservada na comunicação, porém com uma simpatia cativante.
Fiquei contente de entusiasmo ao vê-la. Trocámos um afectuoso abraço familiar e demos início a uma conversa que deveria ter durado uma meia hora, espaço em que a minha pança se cansou e deixou de importunar-me, iniciando, ao que parece, uma greve de fome – que é das mais fáceis; de sede, que eu saiba, nenhum “herói” até hoje, se atreveu a fazê-lo.
Bem, o certo é que, naquele espaço de tempo, a cavaqueira, como se costuma dizer, deu pano para mangas. Desde coisas boas, a coisas menos boas, falámos de quase tudo.
No meio das histórias e historiêtas, a palratório foi povoada por alegrias e desaires, dramas e comédias, que ela foi desafogando com soberbo recato, uma das suas grandes virtudes - que a Natureza lha preserve. Algumas mexeram com o meu estado de espírito, pois tenho-me como uma pessoa sensata e de bom íntimo, não deixando, porém, de defender-me e combater com acérrima raiva, quem ouse indelicada ou abrutalhadamente, entrar no meu espaço interior ou familiar.
Esta de mexer como os meus sentimentos é que deu origem a esta escrevedura, que parece não dizer nada a muitos, mas tenho a certeza absoluta de que vai dizer muito a alguns que andam com a cabeça no ar por causa de uma “maçã”, quem sabe, já bichada.  No final de contas, esta espécie de cronografia não é mais do que uma mensagem natalícia para bater à porta da choupana onde habita consciência, quiçá criogenada, daqueles que não têm a noção da importância que o amor paternal pode ter na formação intelectual e na estabilidade emocional do agregado familiar - com maior incidência nos filhos.
Então Maria - assim se chamava a menina. No meio de toda a nossa ladainha, aflorou à minha percepção que te sentes um bocadinho tristonha. Terei razão?!
Após uns momentos de reflexão, retomámos por alguns instantes uma conversação já mais profunda - que para aqui não vou chamar – e, em tom de desabafo, molhada por algumas lágrimas “rebeldes” que, sem ela dar conta, lhe desciam pela cândida face rosada:
- Aaahm! Um bocadinho – respondeu, com o seu olhar desgostoso, direccionado para o nada!
Um pouco abanado por dentro, pensei dar por terminado o ameno diálogo, porém, lembrei-me de fazer uma observação de positivismo e alento:
- Deixa p’ra lá que agora é Natal e dias melhores virão.
- Olha Maria, por falar em Natal, aproveito para fazer-te uma pergunta:
- Qual era a prenda de Natal que tu mais desejavas?
Maria olhou para mim, com uma expressão triste e os olhos rasos de lágrimas, e, com as suas a tremer, agarrou nas minhas mãos e respondeu:
Bem sabe que não sou muito exigente; a prenda que eu mais desejava era que meu pai voltasse para a minha mãe, passássemos o Natal juntos e depois festejássemos um Natal, todos os dias, até sempre!
Ao ouvir estas palavras, até a vontade de comer me passou integralmente.
Ambos melancólicos, atados por apertado abraço, despedimo-nos.
- Adeus, Maria, gostei de ver-te.
- Eu também gostei de o ter encontrado. Adeus. Até uma próxima.

Moral da história:
HÁ “PRENDAS”, QUE DINHEIRO ALGUM PODE COMPRAR.

António Figueiredo e Silva
Coimbra, 22/12/2019

Obs:
Não faço uso do AO90

Sem comentários:

Enviar um comentário