Detesto, de saída,
quem é capaz de marchar
em
formação com prazer ao som de uma banda.
Nasceu
com cérebro por engano;
bastava-lhe
a medula espinhal.
(Albert Einstein)
RECORDAÇÕES
VI
(Força
Aérea Portuguesa)
NAMPULA
(Moçambique)
“TEXADAS”
DO COMANDANTE “TEXAS”
Quem não se lembra do Tenente Coronel
Soares Pires? A figura que marcou bem a sua passagem pela cidade de Nampula,
como Comandante do Aeródromo Base nº 5. O Comandante “O Texas”, como era
conhecido entre nós. Deve o seu cognome ao facto de andar sempre de “pistolão”,
que deve ter sido “arquivado” com teias de aranha no cano.
Oxalá que hoje a existência desse homem
seja um facto, e que tenha as capacidades intelectuais organizadas, para poder
ler estas linhas e perceber iluminado pela luz da saudade, que ainda existe
alguém que se recorda dele, como um homem de bem, porque conheci também muita
porcaria na minha vida militar, que não era o seu caso.
Nas camaratas do Sporting, - como era como
era conhecido o quartel da Força Aérea na cidade de Nampula, o silêncio era
absoluto; todos nós, embalados nos braços de Orfeu, dormíamos a sono solto e
certamente profundo, enquanto alguns hematófagos persistentes, à falsa-fé e
“patinando” no suor, nos iam sugando o sangue com sofreguidão. Era natural que
muita malta devia estar a ressonar como porcos ao sol de bandulho cheio a
digerir a abóbora, e outros a beijar o travesseiro com todo o carinho e
lascívia, a sonhar com alguma moçoila que sempre fora virtualmente “materializada”
na fotografia de alguma correspondente arranjada na revista Plateia – a brincar
que o diga, alguns apaixonaram-se através do papel e vieram a casar mesmo.
Seriam p´raí duas da madrugada,
subitamente as luzes das casernas acendem-se e aparece o oficial de dia e
mai’lo sargento e…. “toca a acordar rapidamente e toda a malta para o aeroporto”
– o toda a malta era a parte técnica, porque a Polícia Aérea estava aquartelada
no próprio aeródromo.
Foi um bulício danado – é natural que
alguns tivessem enfiado as cuecas por cima das calças ou calçado os sapatos sem
meias, porque desconhecíamos em absoluto as razões da ocorrência, e pensávamos
no pior. A merda não cheirou, por isso presumo que ninguém houvesse sofrido
alguma caganeira nervosa.
Chegámos ao aeródromo, toca a preparar
dois ou três T6 G (Harvards) – ao certo já não me recordo – e mandá-los para o
ar sob ronco cavernoso dos seus motores em potência máxima a fazer rodar uma
“ventoinha” perita em cindir a escuridão da noite, tracionando atrás de si, uma
máquina já velha e cansada de guerrear.
A sua descolagem foi feita para o lado da
cidade cujo azimute passava por cima da casa do Palácio Episcopal, o que
certamente, àquelas horas da noite deve ter colocado “Sua Excelência
Reverendíssima” em estado apreensivo e receoso e assarapantado de tal que, se o
tentou fazer, deve ter-se visto à rasca para apertar todos os botões da batina;
“mas guerra é guerra” (ao escrever isto, estou a rir da cena que vai na minha
cabeça).
Bem, passados uns minutos e alguns vôos de
baixa altitude, aterraram, estacionaram e a guerra acabou.
Viemos a saber que ele estava numa
tertúlia “escocesa” e bem animado, quando alguém lhe disse - a título
propositivo - que ele não seria capaz de acordar o Bispo de Nampula aquela hora
(ao que parece não comungavam de grande simpatia entre si), ele, o Comandante
Texas, levou a coisa peito e resolveu fazer aquela “guerra”.
Soube-se também que o Comandante do
exército mais tarde telefonou ao “Texas” a indagar “que era aquilo”, ao que ele
respondeu, “é aminha guerra, porquê?
*
Uma bela noite, depois de algumas horas de
“distracção” para aliviar o stresse, passou-lhe pela mona fazer uma ronda aos
postos de menagem existentes no aeródromo, cujo serviço era garantido pela
Polícia Aérea – devo dizer, para aqueles que não conhecem da poda, que a P. A.
não foi criada para andar atrás dos aviões com o objectivo de os multar por
excesso de velocidade ou estacionamento proibido - aconteceu que encontrou um
soldado numa posição toscamente cómoda a ferrar-o-galho, com expressão
tranquila e absolutamente alheio a tudo o que o rodeava, cujo aspecto era de
uma imperturbabilidade celestial, porém de pálpebras cerradas, com certeza a
observar o seu interior.
Só quem por lá passou, pode conjecturar o
que era naquele período, ser despertado daquela madorna pelo, pelo Sargento ou
pelo Oficial de dia; e então pelo Comandante da Base, era o cabo dos diabos;
certamente não se borrou porque não calhou. Devia estar pálido e a tremer como
varas-verdes, a sofrer por antecipação o que lhe poderia vir acontecer. O
Comandante “Texas”, pessoa já muito cauterizada pela vida militar, mas
compreensiva, falou com ele sem ralhar nem ameaçar, passando-lhe o que pode
designar-se como uma lição de moral “militarizada”, um correctivo justo,
fazendo-lhe ver que muitas vidas dependiam da sua vigia; seguidamente, pelo que
chegou aos tímpanos do pessoal, acalmou-o com uma pinguinha escocesa de que se
fazia acompanhar, e ficou por lá uns bons minutos a conversar com o soldado.
Há coisas que nos ficam na memória e fazem
parte do cardápio das lições de condescendência que devemos seguir para com os
nossos semelhantes; não eximindo outras que nos ficam marcadas pelo cinzel da
rudeza e da sacanice, e, em face desses acontecimentos que sabemos molestarem e
desmoralizarem, nunca na nossa vida os devemos aplicar aos outros, mesmo que se
encontrem debaixo da nossa alçada.
Por isso, o Tenente Coronel Soares Pires,
o “Texas”, que foi Comandante do AB 5, em Nampula, para mim, e certamente para
muitos, foi uma lição de como a pressão militarista pode ser aliviada sem
afectar a ordem e o dever.
António Figueiredo e Silva
Coimbra, 18/01/2019
Advertência:
continuo não estar em concórdia
com
o novo acordo ortográfico.
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