RECORDAÇÕES
IV
(Força
Aérea Portuguesa)
MUEDA
(Moçambique)
O
RAÚL
Eu
conheci-o, muito bem.
Um maconde com a pele côr de ébano, alto,
de boa compleição física e duro como uma trave cavacada em pau-prêto. Andava
sempre descalço, que eu saiba por opção sua; assim o dizia com um sorriso
aberto, a menos que ele se visse forçado a habituar-se, por não haver xanatos
para a medida das suas “barbatanas”.
Tinha um admirável defeito: era muito
fraquinho na sua força muscular, pois conseguia a proeza de levantar a frente
de uma Unimog; era nessa época o tanque de guerra à disposição do aeródromo,
destinado ao transporte de água potável que se ia buscar lá para as bandas de
Mitêda – lá nunca fui, apenas conhecia do ar. Iam por uma picada (caminho),
cuja data de nascença se perdeu nas franjas do tempo, e, pelas ocorrências que
eram contadas sei que era uma “via” bastante perigosa – ainda por lá houve
muitos “aleijões”- em que todo o cuidado era pouco.
Mas vamos ao “Spartacus”. Raúl, usava uma
carabina que lhe havia sido presenteada pelo exército português para sua defesa
pessoal. Aquele corajoso “animal”, patrulhava a floresta sozinho na recolha de
informações. Desaparecia durante umas semanas, voltado de novo a aparecer são e
inteirinho, sempre a sorrir e com uma história para contar. Muito gostava ele
de vir ali ao Aeródromo tecer uns fios cavaqueira com o pessoal. Nunca o vi
beber qualquer bebida com componentes etílicos, que por sinal eram do agrado
geral e excessivo daquelas gentes.
Houve um piloto, de nome Veloso, que se
pirou com um Harvard T6 G, para o Tanganica, país cuja fronteira com Moçambique
era o rio Rovuma, onde algumas vezes ouvi o martelar cavo das “costureiras” que
emitiam uns rátátás descarados, “que nem ao menos respeitavam a nossa passagem”,
quando íamos lançar correio e pão, porque em Moçímboa do Rovuma, não havia
pista de aterragem.
Um
dia, ao Raúl foi confiada a missão de ir ao Tanganica para confirmar se o avião
se encontrava realmente onde as informações indicavam; ele, depois de uma “inexistência”
fora do habitual, apareceu com a notícia confirmativa de que a máquina lá se
encontrava, tendo fornecido todos os pormenores da sua localização – o major
Santos Gomes (2º Comandante do AB 5) até estava a esquiçar um plano para ir lá
buscar o avião, evidência que não chegou a epilogar porque acabou no planalto
de Mueda, quando, aos comandos de um Harvard, dava uma vassourada à
metralhadora, para socorrer as tropas do exército que estavam a ser atacadas
por elementos da FRELIMO, e o avião foi atingido, tendo embatido no solo, com
consequências letais para o piloto.
Continuando a falar sobre o Raúl: ele
falava zulu, swahíli, francês, inglês e mais outras “línguas” de que agora não
me recordo. Com paciência de Jó ensinou-me a fazer flechas para o arco que me
havia oferecido de uma vez que fui a Macomia, e, em Mueda ministrou-me aulas de
mestrado prático para o seu correto funcionamento. Ele gostava muito de andar
ali pelo aeródromo e a malta deliciava-se com as suas histórias.
Várias vezes lhe disse, “Raúl, se a
FRELIMO te apanha, não te vai perdoar” – ao que ele respondia com natural e
confiante descontração, “não, eu conheço bem o terreno e não me deixo apanhar”.
O Raúl deixou de aparecer.
Um dia perguntei a alguém por ele, e
recebi como resposta, uma triste notícia, “o Raúl foi morto com uma “bazucada em
Macomia.”
Ainda hoje lamento a morte daquele herói,
amortalhado pelo esquecimento - como muitos
outros que dissiparam a vida por uma razão, que agora se pode ver,
injustificada.
RAÚL… que *Nnungu te tenha junto a ele, já que os homens não te deram o devido
valor.
António
Figueiredo e Silva
Coimbra,
11/01/2019
*Deus,
em língua shimakonde.
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