RECORDAÇÕES
III
(Força
Aérea Portuguesa)
MUEDA
(Moçambique)
Ia
sendo a derradeira viagem aérea nos céus azuis de Mueda.
A tarde estava calma. Os raios incidentes
do sol equatorial com toda a sua peculiar fúria, acaloravam o ambiente apostados
em secar o capim, tostar as peles mais macias e claras, imprimindo-lhes
uma matiz trigueira e secar as nossas goelas num
atribulado apelo à cerveja, porque a água podia oxidar as articulações dos
esqueletos que estruturavam.
Os “grandes” aviões, com as suas capas de
duro alumínio ou tela, estavam, com seu interior cálido como uma fornalha, parados
na placa de estacionamento a “dormir” como bestas cansadas, à espera de que o
roncar dos seus motores os despertassem para lhes dar vida. Não muito longe,
uma dezena de corvos com apetite necrófago, corpulentos e negros como azeviche (cá
não existem daquele tamanho), portadores de grande envergadura alar, crucitando,
faziam suaves acrobacias, num bailado digno do Bolshoi, mas para nós arriscadas,
capazes de causar inveja aos mais experientes ases da aviação.
A preguiça estava instalada em mim, quando
um piloto se aproximou e me transmitiu que tínhamos de voar até uma povoação de
nome Macomia, onde estavam “aquarteladas” tropas do nosso exército, para lhes
levarmos correio e aproveitar o vôo para patrulhamento da zona geográfica situada
por baixo da rota estabelecida.
O piloto, por sinal boa criatura e despido
daquela vaidade costumeira, impressa na maioria dos manobradores do manche, era
o Tenente Marques, que mais tarde foi piloto nas Linhas Aéreas de Moçambique
(DETA).
Fico esperançado que ele esteja ainda a
mexer e tenha faculdades para ler isto, acaso lhe vá parar às mãos, pois ele
certamente irá recordar-se deste episódio, que nos poderia ter limpo o sarampo
a ambos.
Após os preparativos inerentes à viagem,
descolámos e o vôo foi estabilizado a não muito grande altura do solo, uma vez
que se podia vislumbrar a beleza da paisagem com bastante pormenor.
Não me recordo qual a conversa que íamos a
ter, mas a determinada altura em que entre nós se projectou uns minutos de
silêncio apenas importunado pelo roncar do motor da avioneta Auster, olhei para
o solo, e vi umas palhotas e um vulto, que me pareceu ter um pau nas mãos; sem
mais nada, viro-me para o piloto e digo, “meu Tenente, vou com um palpite de
que vamos ser atingidos”, ao que ele respondeu, “você está tolo…” pum, pum!? “Parece
que adivinhei”, disse eu.
Na verdade, a avioneta foi atingida, só
faltava saber em que lugar. Lembro-me como se tivesse acontecido há momentos.
De imediato o Tenente encetou a subir para
maior altitude, até atingir os 5.200 pés - dado que bem fixei – e inverter o
rumo para regresso ao ponto de partida.
Enquanto subíamos, veio-nos ao nariz um
cheiro a gasolina; de onde virá? Pensei. Não sei como olho para trás do meu
lugar e noto o chão, que era forrado com contraplacado, com gasolina a escorrer
que se escoava pela *porta de lançamentos - é “interessante”, que não senti
mêdo nem nervosismo alguns; fiquei apenas apático – até hoje não compreendi a
minha reacção – mas certamente que não fiquei contente. Ainda não havíamos
atingido a altitude que Tenente Marques entendia como segura – pelo menos
aparentemente – não sei como olho para a minha direita e vejo um buraco, aproximadamente
a dois palmos da minha estimada cabeça, obviamente aberto por projéctil. Após a
minha informação, entreolhámo-nos com acentuado mutismo, e expressões
interrogatórias que substituíram o conformado encolher de ombros, tendo eu
quebrado o gêlo, “vou abrir a porta um bocadinho e ver se consigo enfiar um
dedo no buraco e vai-se gastando o combustível até ao um limite seguro e depois
seleciona-se para o depósito esquerdo”, ao que ele anuiu.
Consegui abrir um pouco a porta do meu
lado, enfiei o dedo indicador no “buraco, que até parece ter sido “terrorísticamente”
feito à medida, e assim continuámos o nosso vôo de regresso à procedência. Não
sem antes ser selecionado a linha de abastecimento para o depósito esquerdo.
Na curva final para a aterragem,
verifiquei que um dos tirantes do lado direito vibrava um pouco, facto que me
deixou apreensivo.
Finalizada a aterragem, fui fazer “contas
aos estragos”, como é lógico. Os estragos foram todos do lado direito: um
buraco no falp e um outro num dos
tirantes que ligam as asas à fuselagem, tendo a bala seguido para… bingooo! e entrado na asa,
atravessando o depósito, bem pertinho da minha tola.
Quando estava a analisar os estragos,
aparece um rapaz que por sinal era da minha parvónia – Loureiro, concelho de
Oliveira de Azeméis – o Manel Neca, como na terriola era conhecido, que fazia
parte do agrupamento dos Comandos, e tinha vindo, como muitos outros do
exército, abastecer-se ali ao Aeródromo, que tinha de tudo com fartura (o
caraças).
Então, olha para mim e comenta, “ó
Figueiredo, st’ás branco”, pá”! ainda hoje se recorda deste episódio e nas
raras vezes que nos encontramos, fala sempre nisso.
No meio do azar, tivemos sorte; aquela
poderia ter sido a nossa derradeira viagem aérea.
De uma coisa estou convencido: quando coisas
semelhantes acontecem, o mêdo desaparece, talvez por não haver tempo para
reflectir; mas quando o tsunami já
passou e há pausa para meditação, ele cai-nos em cima, com todo o seu peso. Se
calhar foi disso a minha brancura.
É, se a bala que furou o tirante e o
depósito combustível tivesse acertado mais 10 cm para o lado da fuselagem,
adeus viola! Tinha acertado no parafuso de ligação da asa à fuselagem.
Quem veio buscar essa avioneta “aleijada”
para Nampula, a fim de ser reparada, foi o Furriel piloto João Lourenço, que hoje
vive na cidade de Faro - Algarve.
Para quem conhece, é evidente que ele teve
de traçar uma rota com pontos alternativos de aterragem para abastecer
combustível que lhe permitisse chegar ao AB 5 em relativa segurança, porque de
Mueda Nampula, um só depósito não dava autonomia de vôo para isso.
Engraçado! Os buracos iam tapados com fita
adesiva larga, adquirida numa espécie de enfermaria existente no Aeródromo.
Ainda há pouco tempo o Lourenço esteve em
minha casa, onde foi comentada esta façanha.
Mas há mais!
António Figueiredo e Silva
Coimbra, 07/01/2019
*Era uma abertura poligonal, quadrada, com duas
portas que depois de abertas, permitiam o lançamento de correio e sacos com
pão, quando as tropas do exército estavam atoladas devido às grandes chuvadas
torrenciais.
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