RECORDAÇÕES
II
(Força
Aérea Portuguesa)
ЗАПИСИ II
(ВВС Португалии)
RECORDS II
(Portuguese Air Force)
RECORDS II
(Portugiesische Luftwaffe)
(ВВС Португалии)
RECORDS II
(Portuguese Air Force)
RECORDS II
(Portugiesische Luftwaffe)
MUEDA
(Moçambique)
Já eu fazia parte do grupo técnico do Aeródromo
Base nº 5, em Nampula, (Moçambique), quando foi inflamada a “primeira caixa de fósforos”
que marcou o começo da guerrilha no Planalto dos Macondes, promovida pela
FRELIMO; o primeiro “fósforo” havia perdido a sua cabeça em 1960, tendo sido
apagada a sua “lavarêda” por ordem do Governador daquela região no Norte da
Província - tenho p’raí umas datas apontadas, mas já não sei aonde param, no
meio de tanta papelada; cabeça de velho mal aferida – donde resultaram um sem
número de óbitos, cujo quantificação ainda hoje, penso que seja desconhecida,
ou meramente calculada por excesso ou por defeito, factores correspondentes à
conveniência política ou historiadora de quem se possa ter mergulhado sobre matéria.
Essa “caixa de fósforos” que acima me
refiro, foi o início incontestável da guerrilha da encetada pela FRELIMO, que
aconteceu com o lançamento de uma flecha contra um padre, o Padre Daniel, que
ao que vim a saber, lhe trespassou o corpo, atingindo-o potencialmente uma zona
letal, resultando desse “incidente” a sua morte.
Ainda me lembro com salientada nitidez do
momento em que tive conhecimento da ocorrência; a canícula apertava e eu estava
refastelado, na sorna, à sombra de uma das asas de um T6 G (Harvard), onde
momentos antes tinha sido “mordido” por uma formiga cadáver – que quando são
esmagadas cheiram mal p´ra burro, daí o seu nome; deitam um fedor nauseabundo!
– numa coxa, que os calções não protegiam, e cuja cabeça tinha acabado de
arrancar. Aquelas formigas negras como breu, são grandotas e gozam de duas
tenazes aguçadas como agulhas, que quando se enterram na pele, cravam mesmo, e
quando damos por isso e sacudimos sua a cabeça fica sempre presa.
Tinha acabado de aterrar um avião DO 27 (Dornier),
vindo de Mueda, e foi nessa ocasião que tive conhecimento da fatídica sorte
daquele padre, que exercia seu ministério numa Missão em Mitêda ou Nangololo -
já não sei bem - povoações não muito distantes de Mueda.
Andei uns dias a pensar no triste episódio
e uma nuvem de revolta passou-me pela cabeça, abanou-me a “queratina” e resolvi
oferecer-me voluntário para Mueda, um ridículo arremedo a um Aeródromo – vim a
constatar – localizado a cerca de 800 pés de altitude.
Bela terra! Proximamente à pista, mais ou
menos a 50 m, eram só mangueiras bravas, cujos frutos, não obstante terem muito
fios na sua textura interior, eram muito boas; tinham um sabor arrezinado e o
seu caroço, depois de sêco, servia para fazer porta-moedas – trabalho artesanal
para matar o tempo.
O Aeródromo visto do ar quando se vinha de
Nampula, ao aterrar em direcção à aldeia que ficava no topo da pista, podia ver-se
ao lado esquerdo, um pequeno edifício térreo; era o sítio onde existia um posto
de transmissões, decorados com enormes “caixotes” emissores recheados válvulas
enormes e outros componentes electrónicos, que permitiam ouvir melhor o ruído produzido
pela corrente estática do que a voz imitida; um cantinho para o “piriri”
(Morse) e uma secção de cripto; ainda, uma espécie de quartos para os dois
pilotos que por lá estavam em missão de “férias”, com estadia compulsiva.
A uns 30 ou 40 metros afastado, situava-se
o paiol do municiamento, penso que, com algumas dúzias de granadas, e cunhetes
com balas destinadas às espingardas Mauser e às metralhadoras FBP – ao certo não
sei, porque nunca me deu para lá entrar – cujo “manda-chuva”, na altura, era um
Furriel doido varrido, que “gostava muito pouco da pinagra” (?) – estava tudo bem
entregue, sem dúvida alguma!?
Á esquerda desse edifício principal, havia
algo semelhante a uma “arena”, feita de bidons de 500 l cheios de areia, que
anteriormente tinham sido utilizados para o transporte de combustível para os
aviões e outras máquinas; era ali que se recolhiam em “cerrada segurança” os
aviões durante a noite: duas avionetas Auters, dois DO 27, porque os dois T6 G
(Harvads), na maior parte das vezes dormiam ao relento sem nunca terem
necessidade de tomar Brufen – estes últimos e outros que existiam também no AB
5, andaram na guerra da Coreia – rebitados no seu interior havia placas a
atestar essa evidência.
O bar! Esse bar! Era grandioso! Montado
sob uma cobertura cor verde escura tipo tenda de escutismo, explorado por um
furriel da Polícia Aérea, onde não faltava cerveja, sumos, vinho e bebidas
espirituosas destinadas a fazer refrescar o corpo, a diluir os maus pensamentos e a abanar o capacête, como prova
de que a terra anda à roda; a água potável para consumo diário, era filtrada em
vasilhas de grês com filtros de calcário, com capacidade de 5l, existentes nas casernas–
em uma noite filtravam essa quantidade; os aquartelamentos eram retangulares e
construídos em chapa de zinco que durante o dia o sol beijava com violenta
sofreguidão, permitindo-nos tomar banho a sêco - era só limpar com a toalha -
porque a molhado era feito com um balde de 20 l que tinha um ralo e era
dependurado em umas estacas toscamente improvisadas para o efeito, dentro de
uma protecção em forma de quadrado, fabricada com capim e “engenhosamente
estabilizada” com paus.
Havia ali uma torre de menagem em madeira
tipo celta, com mais ou menos 6/7 m de altura, construída com troncos lá da
zona por algum peseudo-agente técnico de engenharia que eu não tive o prazer de
conhecer; esta “torre” tinha uma particularidade que ficou bem burilada na
minha cachimónia: o seu acesso era feito por dois troncos, sobre os quais foram
pregados uns degraus que distavam entre si 15/17 cm, supunha eu que era para moderar
a velocidade do “atleta” no acesso ao
palanque em caso de emergência, com imensas possibilidades dele trocar os pés
pelas mãos, cair e partir alguns ossos, tendo nesse caso direito a umas
merecidas férias hospitalares em Nampula
Este era também o nosso “coreto da guerra”!
É verdade! Era o nosso palanque de “guerra”! Quando vinha destacado para lá um
maçarico (novato), tínhamos por vício depois de jantar, juntarmo-nos na caserna
a jogar à lerpa; então combinávamos com um colega, para este, quando fosse
noite escura, apagar a luz das casernas e gritar: os
turras estão a atacaaaaar! A malta começava imediatamente a
zarpar dali; das moedas de escudo que estavam aos montinhos cima da tábua de
jôgo, às escuras e sob uma danada confusão fingida, cada um abafava as que
pudesse, e o desgraçado do maçarico, não sabendo que devia de fazer, apanhava
um cagaço que posteriormente nos dava um gozo diabólico.
Um dia, o maçarico era um Especialista de
Electricidade acabadinho de chegar de Nampula para passar três meses a tomar
conta dos enormes geradores que forneciam a energia eléctrica ao aeródromo,
excepto a pista de aterragem e a placa de estacionamento que era em terra
batida – questão de poupança. À noite montou-se-lhe a ratoeira, e quando as
luzes da caserna se extinguiram e a malta entrou em debandada, pergunta ele a
trapalhado: p’ra onde bou, p’ra onde bou? Alguém lhe disse, “vai ali p’ra cima
e leva a Mauser”. Ele nervoso, com o mêdo a percorrer-lhe a coluna vertebral,
subiu atabalhoadamente, aquela espécie de arriscados degraus, e quando chega ao
topo da “fortaleza”, aterrado e confuso, certifica-se que havia perdido as
balas; passados alguns minutos a guerra acabou – nessas ocasiões lembrava-me
sempre de Raúl Solnado. No final do “ataque”, o desgraçado que havia perdido as
balas, lá andava de lanterna na mão à procura delas, acabando por as encontrar!?
Era bom rapaz; embora não me recorde do seu nome, lembro-me de que usava bigode,
mas se ele for vivo – oxalá que sim- e chegar a ler isto, ainda vai lembrar-se
e certamente será assolado por um fartote de rir, contaminando todo o seu grupo
familiar, se o tiver.
Era
a nossa guerra privada.
Mas uma noite, atacaram mesmo.
Hei
de contar.
António Figueiredo e Silva
Coimbra, 04/01/2019
Nota:
não sou a favor do novo acordo ortográfico.
Prefiro
morrer com os meus erros.
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