sexta-feira, 4 de janeiro de 2019

RECORDAÇÕES (Força Aérea Portuguesa) II


RECORDAÇÕES II
(Força Aérea Portuguesa) 
ЗАПИСИ II 
(ВВС Португалии)
RECORDS II
(Portuguese Air Force)
RECORDS II
(Portugiesische Luftwaffe)

MUEDA 
(Moçambique)


Já eu fazia parte do grupo técnico do Aeródromo Base nº 5, em Nampula, (Moçambique), quando foi inflamada a “primeira caixa de fósforos” que marcou o começo da guerrilha no Planalto dos Macondes, promovida pela FRELIMO; o primeiro “fósforo” havia perdido a sua cabeça em 1960, tendo sido apagada a sua “lavarêda” por ordem do Governador daquela região no Norte da Província - tenho p’raí umas datas apontadas, mas já não sei aonde param, no meio de tanta papelada; cabeça de velho mal aferida – donde resultaram um sem número de óbitos, cujo quantificação ainda hoje, penso que seja desconhecida, ou meramente calculada por excesso ou por defeito, factores correspondentes à conveniência política ou historiadora de quem se possa ter mergulhado sobre matéria.
Essa “caixa de fósforos” que acima me refiro, foi o início incontestável da guerrilha da encetada pela FRELIMO, que aconteceu com o lançamento de uma flecha contra um padre, o Padre Daniel, que ao que vim a saber, lhe trespassou o corpo, atingindo-o potencialmente uma zona letal, resultando desse “incidente” a sua morte.
Ainda me lembro com salientada nitidez do momento em que tive conhecimento da ocorrência; a canícula apertava e eu estava refastelado, na sorna, à sombra de uma das asas de um T6 G (Harvard), onde momentos antes tinha sido “mordido” por uma formiga cadáver – que quando são esmagadas cheiram mal p´ra burro, daí o seu nome; deitam um fedor nauseabundo! – numa coxa, que os calções não protegiam, e cuja cabeça tinha acabado de arrancar. Aquelas formigas negras como breu, são grandotas e gozam de duas tenazes aguçadas como agulhas, que quando se enterram na pele, cravam mesmo, e quando damos por isso e sacudimos sua a cabeça fica sempre presa.
Tinha acabado de aterrar um avião DO 27 (Dornier), vindo de Mueda, e foi nessa ocasião que tive conhecimento da fatídica sorte daquele padre, que exercia seu ministério numa Missão em Mitêda ou Nangololo - já não sei bem - povoações não muito distantes de Mueda.
Andei uns dias a pensar no triste episódio e uma nuvem de revolta passou-me pela cabeça, abanou-me a “queratina” e resolvi oferecer-me voluntário para Mueda, um ridículo arremedo a um Aeródromo – vim a constatar – localizado a cerca de 800 pés de altitude.
Bela terra! Proximamente à pista, mais ou menos a 50 m, eram só mangueiras bravas, cujos frutos, não obstante terem muito fios na sua textura interior, eram muito boas; tinham um sabor arrezinado e o seu caroço, depois de sêco, servia para fazer porta-moedas – trabalho artesanal para matar o tempo.   
O Aeródromo visto do ar quando se vinha de Nampula, ao aterrar em direcção à aldeia que ficava no topo da pista, podia ver-se ao lado esquerdo, um pequeno edifício térreo; era o sítio onde existia um posto de transmissões, decorados com enormes “caixotes” emissores recheados válvulas enormes e outros componentes electrónicos, que permitiam ouvir melhor o ruído produzido pela corrente estática do que a voz imitida; um cantinho para o “piriri” (Morse) e uma secção de cripto; ainda, uma espécie de quartos para os dois pilotos que por lá estavam em missão de “férias”, com estadia compulsiva.
A uns 30 ou 40 metros afastado, situava-se o paiol do municiamento, penso que, com algumas dúzias de granadas, e cunhetes com balas destinadas às espingardas Mauser e às metralhadoras FBP – ao certo não sei, porque nunca me deu para lá entrar – cujo “manda-chuva”, na altura, era um Furriel doido varrido, que “gostava muito pouco da pinagra” (?) – estava tudo bem entregue, sem dúvida alguma!?
Á esquerda desse edifício principal, havia algo semelhante a uma “arena”, feita de bidons de 500 l cheios de areia, que anteriormente tinham sido utilizados para o transporte de combustível para os aviões e outras máquinas; era ali que se recolhiam em “cerrada segurança” os aviões durante a noite: duas avionetas Auters, dois DO 27, porque os dois T6 G (Harvads), na maior parte das vezes dormiam ao relento sem nunca terem necessidade de tomar Brufen – estes últimos e outros que existiam também no AB 5, andaram na guerra da Coreia – rebitados no seu interior havia placas a atestar essa evidência.
O bar! Esse bar! Era grandioso! Montado sob uma cobertura cor verde escura tipo tenda de escutismo, explorado por um furriel da Polícia Aérea, onde não faltava cerveja, sumos, vinho e bebidas espirituosas destinadas a fazer refrescar o corpo, a diluir os maus  pensamentos e a abanar o capacête, como prova de que a terra anda à roda; a água potável para consumo diário, era filtrada em vasilhas de grês com filtros de calcário, com capacidade de 5l, existentes nas casernas– em uma noite filtravam essa quantidade; os aquartelamentos eram retangulares e construídos em chapa de zinco que durante o dia o sol beijava com violenta sofreguidão, permitindo-nos tomar banho a sêco - era só limpar com a toalha - porque a molhado era feito com um balde de 20 l que tinha um ralo e era dependurado em umas estacas toscamente improvisadas para o efeito, dentro de uma protecção em forma de quadrado, fabricada com capim e “engenhosamente estabilizada” com paus.
Havia ali uma torre de menagem em madeira tipo celta, com mais ou menos 6/7 m de altura, construída com troncos lá da zona por algum peseudo-agente técnico de engenharia que eu não tive o prazer de conhecer; esta “torre” tinha uma particularidade que ficou bem burilada na minha cachimónia: o seu acesso era feito por dois troncos, sobre os quais foram pregados uns degraus que distavam entre si 15/17 cm, supunha eu que era para moderar a velocidade do  “atleta” no acesso ao palanque em caso de emergência, com imensas possibilidades dele trocar os pés pelas mãos, cair e partir alguns ossos, tendo nesse caso direito a umas merecidas férias hospitalares em Nampula
Este era também o nosso “coreto da guerra”! É verdade! Era o nosso palanque de “guerra”! Quando vinha destacado para lá um maçarico (novato), tínhamos por vício depois de jantar, juntarmo-nos na caserna a jogar à lerpa; então combinávamos com um colega, para este, quando fosse noite escura, apagar a luz das casernas e gritar: os turras estão a atacaaaaar! A malta começava imediatamente a zarpar dali; das moedas de escudo que estavam aos montinhos cima da tábua de jôgo, às escuras e sob uma danada confusão fingida, cada um abafava as que pudesse, e o desgraçado do maçarico, não sabendo que devia de fazer, apanhava um cagaço que posteriormente nos dava um gozo diabólico.
Um dia, o maçarico era um Especialista de Electricidade acabadinho de chegar de Nampula para passar três meses a tomar conta dos enormes geradores que forneciam a energia eléctrica ao aeródromo, excepto a pista de aterragem e a placa de estacionamento que era em terra batida – questão de poupança. À noite montou-se-lhe a ratoeira, e quando as luzes da caserna se extinguiram e a malta entrou em debandada, pergunta ele a trapalhado: p’ra onde bou, p’ra onde bou? Alguém lhe disse, “vai ali p’ra cima e leva a Mauser”. Ele nervoso, com o mêdo a percorrer-lhe a coluna vertebral, subiu atabalhoadamente, aquela espécie de arriscados degraus, e quando chega ao topo da “fortaleza”, aterrado e confuso, certifica-se que havia perdido as balas; passados alguns minutos a guerra acabou – nessas ocasiões lembrava-me sempre de Raúl Solnado. No final do “ataque”, o desgraçado que havia perdido as balas, lá andava de lanterna na mão à procura delas, acabando por as encontrar!? Era bom rapaz; embora não me recorde do seu nome, lembro-me de que usava bigode, mas se ele for vivo – oxalá que sim- e chegar a ler isto, ainda vai lembrar-se e certamente será assolado por um fartote de rir, contaminando todo o seu grupo familiar, se o tiver.    
Era a nossa guerra privada.
Mas uma noite, atacaram mesmo.
Hei de contar.
António Figueiredo e Silva
Coimbra, 04/01/2019

 Nota: não sou a favor do novo acordo ortográfico.
Prefiro morrer com os meus erros.

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