quinta-feira, 3 de janeiro de 2019

RECORDAÇÕES (Força Aérea Portuguesa)


A primeira metade da vida passa-se a desejar a segunda;
a segunda, a recordar a primeira.
(Alphonse Karr)

RECORDAÇÕES
(Força Aérea Portuguesa)


Estávamos no ano da graça de1963. Ainda agora me lembro, com intensificada saudade – e vá lá, vá lá!!!
O meu embarque num Douglas DC 6 dos TAM (Transportes Aéreos Militares), sediado na Base Aérea do Montijo, e sua descolagem, até à primeira aterragem após alguns minutos, no Aeroporto de Figo Maduro, na Portela, (Lisboa), onde foram ultimados os preparativos necessários e concluída a entrada de mais “passageiros” e “alguma mercadoria”, que iria culminar com uma descolagem “épica”, em direcção aos céus, rumo ao desconhecido – pelo menos para mim.
Antes do embarque, foi-nos distribuído por “umas assistentes” de bordo, com o cabelo bem aparado, a barba bem escanhoada e bivaque na tola – ainda não tinha chegado o 25 de Abril – “comandadas” por um sargento ranhoso e com focinho austero - como quase todos dessa estirpe -  qualquer coisa como uns pacotes de bolachas de água-e-sal, marca Capitão, umas embalagens de mortadela Isidoro e uns sumos ou leite, já não me recordo bem; mantimento que algum “nutricionista” militar de meia-tigela, com propensão para veterinário, estipulou para o início da “expedição de Rambos” a África

 Após a rolagem seguida de uma descolagem serena, lá segui tolhido de algum receio de que o solo subisse e embatesse na aeronave. Esta era tracionada por quatro “ventoinhas” que, como lâminas rombas, cortavam o ar na escuridão da noite, movidas por quatro motores em estrela dupla com os cilindros ao rubro, que faziam um cagaçal dos diabos.
 Cansado pela luta constante entre a dopamina e a adrenalina causadas pela balbúrdia e ia passando pelas brasas, até que…
Depois de um longo e incómodo vôo nesse já velho e alquebrado Douglas DC 6, que contava com um vasto cardápio inúmeras inspecções técnicas para detectar e “remendar” algumas imperfeições – não tão poucas como isso - impostas pela fadiga do material e confirmar a sua robustez, sempre posta no horizonte da dúvida, lá fui seguindo o destino que para mim era garantido.
Só pensava, “para onde é que estes gajos te levam”? sem nunca me haver passado pela mona quaisquer laivos de arrependimento por me ter voluntariado para a “guerra” em África, essa luta inglória que custou muitas vidas e deu muitas dores de cabeça, para quê? - questiono.
Com a tarouquice e a ignorância dos meus dezanove anos, sentia-me um herói, um defensor da Pátria, um defensor da minha grei e não um mero parvalhão, como é normal sê-lo naquela idade, cuja característica é aproveitada – ainda hoje assim continua– por aqueles que, depois de nos darem um banho de recruta e uma intensa lavagem ao cérebro, nos enviam como “carne para canhão”, para nenhures, local que em absoluto não conhecemos. Este método é que garante ao oficialato uma boa vida, adubada com louvores e medalhas de mérito – desprovidas de mérito algum -  sem nunca darem um tiro ou apanharem alguns estouros na estrutura do “pássaro-de-ferro” onde seguiam – de quando em quando - que por certo lhes iria granjear uma valente caganeira; sem jamais passar pela messe da míngua, onde, desde o cozinheiro, até ao sargento, passando pelo cabo e até aos civis ali empregados, todos rapinavam, colocando em causa a qualidade e a quantidade víveres, que nós em surdina reclamávamos.
O certo é que, quando menos contava, estou a aterrar em Bissau (Guiné).
O ar turvo e abafado, “sai uma cerveja”, passado dois minutos já estava “quente” – bem ela nem chegava a arrefecer, porque a refrigeração de então, não valia a ponta de um corno e as condições climáticas realmente eram péssimas.
Dali zarpei para mais uma jornada, desta vez tendo como azimute, Luanda (Angola), cuja aterragem agradeci, depois de todos os poços de ar que no percurso havia apanhado. Era próximo do meio-dia, como tal, lá fomos enfardar qualquer coisa para a jornada seguinte, com destino à Beira (Moçambique).
Mais um almoço e mais um transbordo, seguindo para a cidade de Nampula (Moçambique). O voo foi feito num avião Nordatlas, já mais velho que o cagar dos cães, com uns assentos laterais corridos, feitos de fita de nylon cruzada, destinados ao lançamento de paraquedistas.
Nova aterragem sobre uma pista tosca ainda em construção, em que se podia ver uma terra batida côr-de-fôgo; era pista de aterragem do AB 5 (Aeródromo Base nº 5) em Nampula, que eu mais tarde comecei a titular de Aeroporto Internacional de Cabo Delgado.
Ar quente e abafado “olha onde te foram meter” – pensei para comigo.
Lá saí da “carroça” aérea com uma mala na mão e alguns tostões – que eram parcos – a dançar em descarado “roçanço” com o cotão dos bolsos e já um havia transporte, à minha espera e dos meus companheiros que não haviam ficado na Beira, para nos levar para o quartel que distava do Aeródromo… talvez uns três ou quatro quilómetros.
Eram as “velhas” instalações uma antiga sede do Sporting Clube de Nampula, toscamente adaptadas a quartel, “que grande quartel” – cogitei.
Fazia muito calor e o ar era sufocante. Entrei no “estábulo” militar e fui assaltado por um cheiro que me fez vomitar o bocado, “Ó Casimiro (este já faleceu há poucos meses, paz à sua alma), que raio de cheiro é este?” É a catinga: deixa lá, que assim que te habituares não darás por nada.
Lá fiz todas as diligências necessárias para a entrada naquele “hotel”, que fazia “cerrada concorrência” ao único hotel que lá havia, o Hotel Portugal.
O quartel, de aposentos “aciganados”, em que os percevejos eram os principais terroristas, cujo ataque era sempre feito durante a noite, de surpresa e sob anestesia, resultando da sua “cirurgia” umas bolardas que davam uma comichão infernal.
Depois de muitas peripécias e digressões por Nova Freixo, Vila Cabral, Mueda, Porto Amélia, Mocímboa da Praia e por outras localidades onde havia pistas de aterragem, muitas vezes feitas à pressa com troncos de madeira várias arrastados vezes por carros do exército – coitados! muito passaram!
Enfim, por ali fui ficando até 1966, ano em que decidi por termo à minha carreira militar; primeiro porque não via futuro, segundo porque nunca fui de espírito materialista e terceiro porque sempre gostei de ser independente.
 Como se pode ver, a minha vida foi sempre engraçada dentro da desgraça, da qual agora, com absoluto desprezo, ainda faço galhofa, sorrindo e pensando: VENCI; até que a Natureza faça calar o meu grito de vitória. Aí, chapéu!?
Se a vontade me assistir e os meus neurónios não me atraiçoarem, tenho muitas e boas para contar.
A todos os meus companheiros de armas ainda vivos e aos mais maçaricos, um Grande Abraço. Aos que faleceram, a merecida paz à sua alma e as minhas sentidas condolências aos seus familiares.
E quando eu bater-a-bota, não levem a mal por eu não ir ao vosso mortório, porque a vida continua e…
“Por morrer uma andorinha, não acaba a Primavera”.

António Figueiredo e Silva
Coimbra,02/01/2019

Nota: Continuo a ser contra a cebolada
 do novo acordo ortográfico.

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