A primeira metade
da vida passa-se a desejar a segunda;
a segunda, a
recordar a primeira.
(Alphonse
Karr)
RECORDAÇÕES
(Força
Aérea Portuguesa)
Estávamos
no ano da graça de1963. Ainda agora me lembro, com intensificada saudade – e vá
lá, vá lá!!!
O meu embarque num Douglas DC 6 dos TAM
(Transportes Aéreos Militares), sediado na Base Aérea do Montijo, e sua
descolagem, até à primeira aterragem após alguns minutos, no Aeroporto de Figo
Maduro, na Portela, (Lisboa), onde foram ultimados os preparativos necessários
e concluída a entrada de mais “passageiros” e “alguma mercadoria”, que iria
culminar com uma descolagem “épica”, em direcção aos céus, rumo ao desconhecido
– pelo menos para mim.
Antes do embarque, foi-nos
distribuído por “umas assistentes” de bordo, com o cabelo bem aparado, a barba
bem escanhoada e bivaque na tola – ainda não tinha chegado o 25 de Abril – “comandadas”
por um sargento ranhoso e com focinho austero - como quase todos dessa estirpe
- qualquer coisa como uns pacotes de bolachas
de água-e-sal, marca Capitão, umas embalagens de mortadela Isidoro e uns sumos
ou leite, já não me recordo bem; mantimento que algum “nutricionista” militar de
meia-tigela, com propensão para veterinário, estipulou para o início da “expedição
de Rambos” a África
Após a rolagem seguida de
uma descolagem serena, lá segui tolhido de algum receio de que o solo subisse e
embatesse na aeronave. Esta era tracionada
por quatro “ventoinhas” que, como lâminas rombas, cortavam o ar na escuridão da
noite, movidas por quatro motores em estrela dupla com os cilindros ao rubro,
que faziam um cagaçal dos diabos.
Cansado pela luta constante entre a dopamina e
a adrenalina causadas pela balbúrdia e ia passando pelas brasas, até que…
Depois de um longo e incómodo vôo nesse já
velho e alquebrado Douglas DC 6, que contava com um vasto cardápio inúmeras
inspecções técnicas para detectar e “remendar” algumas imperfeições – não tão poucas
como isso - impostas pela fadiga do material e confirmar a sua robustez, sempre
posta no horizonte da dúvida, lá fui seguindo o destino que para mim era garantido.
Só pensava, “para onde é que estes gajos te
levam”? sem nunca me haver passado pela mona quaisquer laivos de arrependimento
por me ter voluntariado para a “guerra” em África, essa luta inglória que
custou muitas vidas e deu muitas dores de cabeça, para quê? - questiono.
Com a tarouquice e a ignorância dos meus dezanove
anos, sentia-me um herói, um defensor da Pátria, um defensor da minha grei e
não um mero parvalhão, como é normal sê-lo naquela idade, cuja característica é
aproveitada – ainda hoje assim continua– por aqueles que, depois de nos darem
um banho de recruta e uma intensa lavagem ao cérebro, nos enviam como “carne
para canhão”, para nenhures, local que em absoluto não conhecemos. Este método
é que garante ao oficialato uma boa vida, adubada com louvores e medalhas de
mérito – desprovidas de mérito algum - sem nunca darem um tiro ou apanharem alguns
estouros na estrutura do “pássaro-de-ferro” onde seguiam – de quando em quando -
que por certo lhes iria granjear uma valente caganeira; sem jamais passar pela
messe da míngua, onde, desde o cozinheiro, até ao sargento, passando pelo cabo
e até aos civis ali empregados, todos rapinavam, colocando em causa a qualidade
e a quantidade víveres, que nós em surdina reclamávamos.
O certo é que, quando menos contava, estou
a aterrar em Bissau (Guiné).
O ar turvo e abafado, “sai uma cerveja”,
passado dois minutos já estava “quente” – bem ela nem chegava a arrefecer,
porque a refrigeração de então, não valia a ponta de um corno e as condições
climáticas realmente eram péssimas.
Dali zarpei para mais uma jornada, desta
vez tendo como azimute, Luanda (Angola), cuja aterragem agradeci, depois de todos
os poços de ar que no percurso havia apanhado. Era próximo do meio-dia, como
tal, lá fomos enfardar qualquer coisa para a jornada seguinte, com destino à
Beira (Moçambique).
Mais um almoço e mais um transbordo,
seguindo para a cidade de Nampula (Moçambique). O voo foi feito num avião Nordatlas,
já mais velho que o cagar dos cães, com uns assentos laterais corridos, feitos
de fita de nylon cruzada, destinados
ao lançamento de paraquedistas.
Nova aterragem sobre uma pista tosca ainda
em construção, em que se podia ver uma terra batida côr-de-fôgo; era pista de
aterragem do AB 5 (Aeródromo Base nº 5) em Nampula, que eu mais tarde comecei a
titular de Aeroporto Internacional de Cabo Delgado.
Ar quente e abafado “olha onde te foram
meter” – pensei para comigo.
Lá saí da “carroça” aérea com uma mala na
mão e alguns tostões – que eram parcos – a dançar em descarado “roçanço” com o
cotão dos bolsos e já um havia transporte, à minha espera e dos meus
companheiros que não haviam ficado na Beira, para nos levar para o quartel que
distava do Aeródromo… talvez uns três ou quatro quilómetros.
Eram as “velhas” instalações uma antiga
sede do Sporting Clube de Nampula, toscamente adaptadas a quartel, “que grande
quartel” – cogitei.
Fazia muito calor e o ar era sufocante.
Entrei no “estábulo” militar e fui assaltado por um cheiro que me fez vomitar o
bocado, “Ó Casimiro (este já faleceu há poucos meses, paz à sua alma), que raio
de cheiro é este?” É a catinga: deixa lá, que assim que te habituares não darás
por nada.
Lá fiz todas as diligências necessárias
para a entrada naquele “hotel”, que fazia “cerrada concorrência” ao único hotel
que lá havia, o Hotel Portugal.
O quartel, de aposentos “aciganados”, em
que os percevejos eram os principais terroristas, cujo ataque era sempre feito
durante a noite, de surpresa e sob anestesia, resultando da sua “cirurgia” umas
bolardas que davam uma comichão infernal.
Depois de muitas peripécias e digressões
por Nova Freixo, Vila Cabral, Mueda, Porto Amélia, Mocímboa da Praia e por
outras localidades onde havia pistas de aterragem, muitas vezes feitas à pressa
com troncos de madeira várias arrastados vezes por carros do exército – coitados!
muito passaram!
Enfim, por ali fui ficando até 1966, ano
em que decidi por termo à minha carreira militar; primeiro porque não via
futuro, segundo porque nunca fui de espírito materialista e terceiro porque
sempre gostei de ser independente.
Como
se pode ver, a minha vida foi sempre engraçada dentro da desgraça, da qual
agora, com absoluto desprezo, ainda faço galhofa, sorrindo e pensando: VENCI;
até que a Natureza faça calar o meu grito de vitória. Aí, chapéu!?
Se a vontade me assistir e os meus
neurónios não me atraiçoarem, tenho muitas e boas para contar.
A todos os meus companheiros de armas
ainda vivos e aos mais maçaricos, um Grande Abraço. Aos que faleceram, a
merecida paz à sua alma e as minhas sentidas condolências aos seus familiares.
E quando eu bater-a-bota, não levem a mal
por eu não ir ao vosso mortório, porque a vida continua e…
“Por morrer uma andorinha, não acaba a
Primavera”.
António Figueiredo e Silva
Coimbra,02/01/2019
Nota: Continuo a ser contra a cebolada
do novo acordo ortográfico.
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