quarta-feira, 22 de agosto de 2018

“VIVER DEPOIS DE MORRER” "LIVING AFTER DYING"


Não viva para que a sua presença
seja notada, mas para que a sua
falta seja sentida.
(Bob Marley)

“VIVER DEPOIS DE MORRER”
"LIVING AFTER DYING"
«ЖИЗНЬ ПОСЛЕ УТЕЧКИ»
(A minha vontade depois da morte)

É, não quero falecer outra vez porque fiquei farto de viver na vez anterior.
A questão é que quando nascemos, sem dar por isso já andamos meio vindimados. E de que maneira!? Mortificamo-nos com o cilício da avidez, essa maleita que transforma o íntimo de todo o ser humano. Embora relativa, porque a sua proporção varia de criatura para criatura, em função do meio onde vive e do que está ao seu alcance obter e usufruir dentro desse mesmo meio, não excluindo contudo a igualdade natural na sua distribuição. Lá nisso, a Natureza é franca e imparcial.
A manifestação mais palerma que conheço, porque não lhe encontro outro sentido para isso, é a ostentação de domínio material depois da morte, quando todos devem saber que, após decorrida essa acção natural por o prazo de validade haver terminado e a igualdade absoluta ser “facultada” imperativamente a todo o ser vivente, sem ingresso de volta, ser uma realidade. Se calhar estão convencidos de que após transporem a linha ténue que separa a vida da morte, vão ter um exército de Serafins de cornêtas em punho a fazerem um chinfrim danado numa faustosa recepção para um banquete celestial. 
O bater-a-caçolêta não é uma condição transitória, é mesmo para acabar. Muitos sofrem tanto pela ânsia do ter, que passam a vida a espezinhar uma comunidade inteira e esquecem-se de que a morte apenas lhe rouba a vida e nada mais. O resto fica do lado de cá para os “abutres” que, de bicos abertos e olhar aguçado, não renunciam à suculência do “manjar”, quando ele existe, caso contrário, por entre murmúrios de azedume, vão entreter-se a chuchar no dedo – se não forem manêtas; quando não, cheios de baba e raiva, abocanham os côtos que lamentavelmente possuem.
Não obstante todas estas condicionantes, muitos, não tão poucos como possamos imaginar, enquanto vivos, ainda fazem questão de “testamentar” uma última vontade, onde esteja manifestada a importância que teve a sua passagem “relâmpago” por este mundo, e como se esse sentimento fosse a chave que lhes abriria as portas do Paraíso.
Ao estilo faraónico, ainda acreditam piamente que vão encontrar um lugar de proeminência do lado de lá. Pobreza de sensatez, louvado seja Deus!
Todos os que pensam dessa forma esquecem-se de que na realidade o que está a avizinhar-se é o momento em que todos temos a mesma predestinação, que não podemos evitar e que embarcamos desta para melhor com absoluta ignorância do que é a vida. Sem sabermos o que fomos, qual a razão da nossa existência, de onde viemos e qual o nosso papel no mundo que acabámos de deixar.
Deslembramos que cada momento que passa do princípio, é menos um minuto em falta para o fim; mas se soubermos viver com arte, sufocamos o medo da morte.
O tempo em relação a nós é finito mas mantém a sua dimensão própria, inalterável e não passa por nós, nós é que passamos por ele; vamos indo e ele vai ficando. É como viajar de locomotiva; a paisagem não passa por nós, nós é que passamos pelo panorama; apenas com uma diferença, não há lugar para o regresso.
O muito que pode haver, em qualquer canto é uma tabuleta com um, “Aqui jaz”! Uma “patranha”, porque na realidade ali não repousa ninguém. Repousa porquê? Está cansado?
Por tudo isto e muito mais que fica por falar, como minha vontade após o meu falecimento, ambicionava que o cangalheiro se visse forçado a suplicar a alguém de mãos aveludadas, para que me retirasse a última camarinha de líquido seminal ainda retido, obstáculo impeditivo para que ele pudesse fechar com facilidade e usual desdém, as portas do meu caixão. Depois, viverei descansado!
Para um finado, não é desejar muito.

António Figueiredo e Silva
Coimbra, 16/08/2018

     


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