segunda-feira, 16 de outubro de 2017

RECORDAÇÕES

Esta crónica, tem
por objectivo recordar aos mais velhos
 e transmitir aos mais novos, alguns aspectos
da vida na aldeia de Vila Verde de Oura,
em tempos antigos.
(A.Figueiredo)

RECORDAÇÕES
(Retalhos da vida em Vila Verde de outros tempos)

Já se passaram muitos anos, mas ainda me recordo com acentuada saudade, o pousar à noite o cântaro na grade do chafariz para o ir enchendo com o seu preguiçoso fio de água, nessa altura potável, ou então ter de ir busca-la à velha fonte do Prado com o mesmo objectivo – nessa altura ainda ninguém pensava em água canalizada ou saneamento; cada um tinha que se valer daquilo que havia. O despertar nas manhãs de verão em Vila Verde, aldeia tipicamente transmontana, tinha muita graça; acordava-se ao som de alguns passarocos matinais e ao cantar dos galos em machista desafio, intercalados com alguns latidos a reclamarem a ração da manhã; até os recos bem cevados (porcos gordos), exaltados pela larica, enquanto fuçavam no estrume do cortelho, de rabo torcido, grunhiam como se fossem morrer naquele momento; aqui d‘elrei! Aqui d’el rei!
Cinco e meia, seis da manhã; a alba começava a estender o seu manto de palidez amarelada sobre a aldeia, já se podia ouvir - quem não era mouco – o sofrido gemer por falta de sebo nos eixos dos toscos carros, que uma parelha de bois com cor acastanhada, com as “molhelhas” (espécie de ganga com dois capacetes de couro que assentam na cabeça entre os chifres), encastradas entre os cornos, vagarosamente tocava (puxava), como se o tempo para eles não tivesse fim; ao mesmo tempo que iam ruminado com paciência de Jó, a palha que lhes vinha da pança, que depois e remoída era dirigida ao estômago; estou certo de que ao mesmo tempo iam ruminando também a sua pouca sorte de terem nascido bois, os sacrificados e mal agradecidos da lavoura.
De vez em quando lá ia uma aguilhada (vara comprida com um pico ou aguilhão na ponta) no traseiro, já calejado por tantas outras, que era o único acelerador de mão de que o guia dispunha, para “tchegar” (chegar) o mais depressa ao campo, onde os esperava um rude arado de uma única aiveca, com que iriam amanhar a terra para a colocar a “planta” das couves retiradas duma “embelga” (alfobre), para a época de Natal. É hábito juntá-las ao polvo, que por vezes saía duro como cornos, e ao bacalhau, no dia de consoada.
Estas coisas eram sempre papados em família, todos aconchegados à lareira, enquanto a fogueira crepitava e as “tchóinas” bailavam sem refrigério em frenético rodopio, e subiam pela chaminé mascarrada (suja) de fuligem, em direcção ao céu.
Era muito raro o pançudo do Pai Natal lembrar-se de passar por aquelas bandas, porque ele, ainda hoje, só passa confiança a quem tem haveres e a quem a vida sorri, nem que seja através de um sorriso fingido.
Era também frequente acordar ao som das interjeição imperativas em cantarolado tom, de… “Tchica, Xóoo! (chica, xóoo!). E não é que a desgraçada da burra parava mesmo com o travões às quatro patas, enquanto ia abanado o rabo, que mais parecia um ramo de mata-pulgas (pequeno arbusto que antigamente usavam para substituir as vassouras), para açoutar (acoitar) algumas moscas  que se apresentavam com voraz apetite para um pequeno-almoço de caspa, colhida no lombo do sofredor mas conformado asinino. Extenuado pela carga e talvez por umas pauladas sobre o lombo, o saco-de-encher onde o dono por vezes descarregava a sua fúria decorrente dos revezes da vida, ainda havia de ter que aturar a aqueles animais alados e chatos pelas suas teimosas investidas, que a importunavam por tudo quanto era pêlo, e não lhe davam tréguas.
Tinha acabado de “chegar” com umas “gabelas” (molhos) de gios (gravetos) entalados entre estadulhos (fueiros), para reserva de inverno e também para acender o lume, onde um pote de ferro fundido, negro como breu, jazia como um enforcado suspenso numa velha gramalheira (corrente), à espera de que lhe aquecessem o cú pra cozer uns “tchítcheros” (fiejão-frade) e um “xabitcho” (bocado) de presunto ou uma languiça (linguiça, chouriço) para o almoço, que nunca tinha uma hora certa e dependia da dura azáfama da lavoura que velho transmontano tentava domar munido de uma xoitoira (foicinha) e uma pequena xatchoila (enxada), artefacto que por ali nunca foi de grande dimensão.
Quando calhava, era a hora do almoço, regado com boa pinga – quem a tinha – vindo a seguir uma pequenina sesta, que passava num abrir e fechar de olhos e acabava com um amplo bocejo de e uma distensão braçal, para desenrodilhar a musculatura e activar a circulação, ficando pronto para mais uma tarde até ao pôr-do-sol, levando consigo um xabitcho de pão, meia dúzia de azeitonas e uma pinga de vinho para a merenda, que lhe forneciam um lenitivo aparente de força e alento, para acabar o dia extenuado e com as cruzes a doer.
No fim, lá regressavam todos, mail’a a burra já com o bandulho redrôlho (inchado), pejado de pasto, presa ao carro, que que fazia e frete de acompanhar na sua calma burrical sem esticar muito a corda; a charola, desta vez lamuriava-se em mais alto tom, não só por falta de untadura, mas também porque carregava com um montão de gerimús (abóbora graúda cultivada na zona) para fazer doce, sopa e as filhoses pela Natal.
Eram coisas engraçadas que infiltraram nas brumas do tempo, mas ficaram gravadas nas nossas recordações.

António Figueiredo e Silva
Coimbra, 16/10/2017
www.antoniofsilva.blogspot.com.



  

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