quinta-feira, 5 de janeiro de 2017

O DANIEL

O DANIEL

“Eu antes quero ser como sou e ter a cabeça que tenho, do que ter pernas e braços e ser como alguns!?...” 

Era a sua máxima, desinibida e sem preconceitos pela sua extrema deficiência.
A quadra que abaixo se segue, foi criação de um natural de Vila Verde, Vidago. Era deficiente motor de nascença; as suas pernas eram uma amostra enrodilhada de membros; das suas mãos apenas funcionava perfeitamente a mão esquerda. Era um exímio artista em esculpir altos-relevos em madeira; encostando ao peito o naco a esculpir, entalava-o contra uma parede e servindo-se da mão esquerda e um fraco canivete, fazia maravilhas. Uma delas, foi a escultura de António de Oliveira Salazar, nessa altura Primeiro-Ministro do Governo português, que lhe valeu oferta de uma cadeira de rodas, que se ajustava à sua deficiência -para a época já era um grande bem.
Com um só braço, ele subia os degraus da escada da minha falecida sogra, a D. Áurea, com tanta velocidade como uma pessoa normal.
Na altura, que também havia coisas más, talvez em menor quantidade das que agora existem, oficialmente ele não podia frequentar a Escola Primária; porém, impelido pela sua tenacidade aliada à boa vontade e à condescendência da Professora, por lá andou e sem perder ano fez a 4ª classe.
A sua força interior era tanta, que continuou a estudar em casa, e, com a ajuda de um rapaz seu amigo, na altura seminarista, conseguiu fazer o 2º ano, que era o mínimo necessário para entrar para a Escola de Belas Artes onde realmente concluiu o curso que desejava. 
Chegou mesmo a representar Portugal no estrangeiro e uma das exposições que fez foi no Japão, da qual a RTP captou imagens que com certeza devem fazer parte das fitas ou da videoteca daquela estação televisiva.
Mais tarde arranjou trabalho numa tipografia em Lisboa, como tipógrafo, casou, e mandou construir uma vivenda em Cascais, -Vivenda Danisa- adaptada às suas deficiências motoras. Talvez por ironia do destino ou por vontade própria, não deixou descendentes directos.
Nunca notei quaisquer complexos de inferioridade pelo estado do seu físico. Era bastante alegre e conversador, sabia muito bem o que dizia e tinha muito boa oratória.
Vi-o conduzir o seu carro com uma perícia que causava admiração aos melhores condutores e inveja a muitos nabos, que ainda hoje florescem e enfeitam com a sua rama as estradas nacionais
De seu nome, Daniel da Rocha Gomes.
Já faleceu.
Esta sua quadra é dedicada a um chafariz que foi alimentado por uma mina, actualmente de úbere seco, que abasteceu de água durante muitos anos toda a aldeia de Vila Verde. O fontanário que ainda hoje existe, a aridez tomou conta dele e deixou de gemer quando em fantasiosa recordação se carrega na sua virtual torneira. Porque da real apenas existe um “arqueológico” coto de velho latão. Está situado num largo do qual foi padrinho: O Largo do Chafariz.

Até mesmo no Inverno
Este velho chafariz
Parece um velho enrugado
Com o pingo no nariz.
        (Daniel da Rocha Gomes)

Nota: Um artista que a comunicação social deixou cair na penumbra do esquecimento.

António Figueiredo e Silva
Vila Verde/2003

www.antoniofsilva.blogspot.co.

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