segunda-feira, 12 de dezembro de 2016

O "MANEL BAREIRO"

O “MANEL BAREIRO”
Ou
“MANEL D’OBAR”
(Coisas da minha terra)


Vendedor de peixe
Alto, dono de uma altura bastante abonada, de boina posta de lado sobre a cabeça para lhe proteger a vista dos raios do sol, o nariz meio afiado, tez salitrada e algo escamada pela aragem do mar; todas as semanas esta figura vinha desde a praia do Furadouro, localizada em Ovar, até Loureiro,
a apregoar o seu “quem queeer, peixe freeesco!”, pescado no mesmo dia - pelo menos, com solene convicção amparada por um modesto sorriso na face, assim o garantia. Calcorreando a pé e descalço, a massacrar as plantas dos seus grandes pés, transportando um pau sobre o ombro com duas canastras, uma em cada ponta, toscamente amarradas por um bocado de corda de sisal, lá vinha aquele desventurado a quem a sorte não protegeu, à torra do sol quando a canícula do estio apertava, fazer sua “venda”, que era mais esmolar do que a vender - por vezes tinha a sorte de acontecer as duas coisas.   
Naquele tempo a vida era muito dura! E, para aqueles que nasceram em determinadas regiões riscadas de bons acessos, andavam sempre a sobrevoar as faixas aflitivas da pobreza, mantendo no entanto uma seriedade e uma humildade, hoje custosas de achar.
Há muitos anos, o Furadouro e a Torreira, eram regiões piscatórias de acessos agrestes, que as colocavam distantes dos centros mais povoados; pertenciam por isso, a um grupo onde muitas de outras áreas marinhas tinham os mesmos problemas, e que também não lhes ficavam atrás na escassez de quase tudo, porque nem só de peixe vivia o homem.
Pois este, o Manel Bareiro, como era conhecido em Loureiro, andava uma distância que rondava dezoito, vinte quilómetros, para cada lado – era um bocado! – para cumprir a penosa missão de assegurar pelo menos, que a broa não faltasse em sua casa, porque peixe havia com abundância; de tal maneira que muito dele apodrecia e era vendido ao preço da uva mijona para adubar os campos na minha terra. Chamavam àquele fertilizante, que fedia a ranço p’ra burro, escasso – desconheço a etimologia da palavra.
Chegava aqui, as pessoas já o conheciam bem, e então levantava o *oleado que era o impermeável da época, com o qual forrava as canastras e protegia o peixe da quentura do sol, exibia a sua mercadoria que era bem regateada antes de passar as mãos do cliente e depois… “por acaso bocê num tem p’raí um bocadinho de brôa que me possa dar? A bida s’tá má, o pêxe num dá case nada porque as pessoas num tem dinheiro; e atão no Inberno é que passêmos munta fôme, porque a companha num bai ò mari, sabe? É uma bida, que só Deus sabe!? – Dizia aquelas palavras com alguma tristeza envolvidas numa expressão de resignação imposta pela madrasta da vida e docilmente suportada pela sua maneira de ser.
Se lhe davam a “côdea”, levantava o encerado o colocava o pão entre este e acanastra, onda já jaziam alguns nacos por outras pessoas ofertados.
Lembro-me muito bem dele; era muito boa pessoa e muito bem educado, e, acima de tudo, dotado de uma mansidão do tamanho da sua estrutura física; grande!
Um dia até me ofereceu um galricho, que é uma artimanha artesanal feita com aros de vime e rede, para colocar nos canais ou nos rios onde havia peixes; quando eles entravam já não conseguiam sair.
Eu era muito miúdo quando o conheci e provavelmente ele já não se encontra entre nós, mas eu nunca o esqueci; chegou pois a hora de, com muita saudade, relembrar o seu nome, uma pessoa a quem a vida bastante causticou.
O “MANEL BAREIRO” ou “MANEL d’OBAR”.

António Figueiredo e Silva
Loureiro 12/12/2016

*Oleado; era um pedaço de lona besuntado
 com óleo de linhaça, depois posto a secar,
cheirava mal p’ra caraças, e servia de impermeável
para águas da chuva e outros líquidos; ainda não
havia sido descoberto o plástico.



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