segunda-feira, 31 de outubro de 2016

O MELRO

O MELRO
(Não tem nada a ver com Guerra Junqueiro)

Eu conheci-o! Não era jovial, nem alegre, nem luzidio e não soltava risadas de cristal… as suas anafadas “melodias”, mais pareciam o cacarejar de um garnisé irreverente, cantado de galo em riba do poleiro, antecipadamente organizado para ele. Quando o vi pela primeira vez, assomou-se-me à minha já astigmática visão, uma figura caricata, que, pelo ar tosco que apresentava a orbitar o ridículo, parecia ter saído da pena sarcástica e contestadora do já falecido José Vilhena – que a sua alma de guerreiro, descanse em paz.
A sua plumagem era nevoenta, surrada e em desalinho. Até os sapatos onde as bases das suas canetas assentavam, eram tão disformes na medida, que os dedos muito teriam de penar para chegar às biqueiras, sem nunca o conseguirem. O seu pescoço depenado, de reles galináceo, era atabalhoadamente enrolado num farrapo pintalgado, de mau gosto, mais parecido com um Kafie árabe; o seu revestimento epidérmico era trigueiro, como um chouriço minhoto - na sua aparência e não no gosto - antes de ser defumado, encimado por umas urzes capilares mal aparadas e em desalinho, - à reguila - seboso ou encharcado de brilhantina e polvilhado com alguma caspa à mistura - ou era da minha vista - com traços de rebeldia puerilizada que, no seu todo, exibia falta de uma presença respeitosa, como é requerido ou exigido a uma figura aristocrática, na cultura em que vivemos.
Olhei para aquele espécime da fauna governativa, e critiquei para com os meus botões: “então é esta avis rara que exige ressarcimento pelas suas baboseiras”? O que é que este saltimbanco quer?
Fiquei pasmado ao ouvir o seu tagarelar! “Aureolado” por uma simpatia e uma descontracção constrangidas, onde era notório que a sua linguagem gestual atraiçoava a fidelidade dos argumentos arrancados pela picareta da sacanice atada por um baraço fibroso de mau fígado, ao cabo acasmurrado de velhaca vingança, porém, desfavorável ao estabelecido no seu juízo. Pelo menos, naquele momento, assim o entendi.
Não será fundamental muito conhecimento científico, para um velho como eu analisar um comportamento defeituoso, muitas vezes mal incutido no reino da petizada, que, por se sentirem homens a sério, - que nunca serão - face à alcândora onde que foram pousados, posição essa, consequente da cegueira reinante que em determinado tempo contaminou os sentidos de muitas pessoas, e serviu de trampolim a manhosas conveniências de outras, que, destituídas qualquer sentido ético, destes espécimes se serviram para atingirem os seus fins.
Ao entrar no alvazil, olhei para a ave e murmurei para comigo, em reservado solilóquio: este merda não presta; não vale a ponta de um corno.
Era realmente um melro que não interessava, nem ao Menino Jesus – como é costume dizer-se na gíria depreciativa do nosso povo.
Era uma ave de franzina estrutura, que, parodiando, mais se assemelhava à de uma carriça; não tinha bico amarelo, a totalidade do seu aspecto era tosco, escanzelado e não sabia chichorrobiar.
Sentado no seu “galho” com as pernitas traçadas, numa clara falta de respeito para os princípios mais elementares estabelecidos para um Sinédrio, postura pela qual não foi admoestado, sinal de que por ali havia uma certa intimidade.
Não parecia uma ave; mais parecia uma autêntica abécula, um fiasco, um triste arremêdo à passarada da sua estirpe.
Lá encetou a sua lengalenga num arengado assobiador, condimentado com um intenso cheiro a falso sofrimento, de certeza cozinhado numa rábula partitural antes ensaiada, numa tentativa maléfica de mudar o rumo à razão que não estava do seu lado.
Mas que rico melro!?

António Figueiredo e Silva

Coimbra, 07/11/2015
www.antoniofsilva.blogspot.com
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