sexta-feira, 30 de janeiro de 2015

OS MORTOS NÃO QUEREM FLORES





Quando agoniares alguém em vida,
não te inquietes com o castigo;
 a seu tempo, ele desabará sobre ti.
(?)

OS MORTOS NÃO QUEREM FLORES

Ainda que o título, e também a deducional dissertação que se segue, aparentem conter uma fisgada de cinismo propositado, é verdade; não deixa contudo, de estar dentro dos razoáveis limites da realidade, se nestas linhas forem esgravatados alguns defeitos na formação da verdadeira essência do ser humano.
Tantos!!! Tantos embarcaram e desprezivelmente foram mal tratados em vida! Muitos, que morreram na maior miséria assistencial e afogados em inimaginável sofrimento psicológico, foram até hoje “recordados” pelos seus algozes, pelo menos uma vez por ano; sob um semblante carregado de remorsos, ostentam ramos de flores que eles não cheiram, “salpicadas” por um carpimento fingido e sem tempero salitrado, que eles não vêm, a balbuciar umas ladainhas que eles não ouvem; este manhoso aparato é só para a comunidade ver e não poder censurar entre si lá na terrinha, em encontros furtuitos, onde a crítica leveda sobre a fornalha atiçada de maldizer, num grande alguidar de mexeriquice entre comadres, pela carência de novidades construtivas; é normal, “eu ouvi dizer”…
Se bem que nunca haja desvivido, sinto que deve ser deveras “penoso” ser-se maltratado em vida e atraiçoado depois de morto.
Se houvesse a possibilidade de um juízo final contemporâneo, os campos-santos seriam palco das mais aterradoras batalhas campais, onde haveria um ajuste de contas do outro mundo, contra a falsidade deste, que culminaria com a hipocrisia escalpelizada e posta a léu. Lápides, tábuas carcomidas e lodosas com pregos ferrugentos cravados, pedras dos arruamentos, velas e castiçais, e até lamparinas que há muito tempo não viam o pavio aceso, tudo seria utilizado como apetrechos de ataque, perante o olhar atónito dos vermes que rastejavam pelas bordas lamacentas ou arenosas das tumbas, assombrados com o quadro dantesco que se lhes deparava, mas ávidos de apetite, reclamando às suas presas putrefactas, o pouco ou nada que ainda haveria para sugar.
Neste panorama mórbido, só se ouviriam gritos de aflição no meio do ranger sêco e cavernoso de alguns dentes há muito tempo sem mastigar e o som grave entre as ossadas que andavam pelo ar chocando entre si e os seres deste mundo, contra os quais foi desencadeada a peleja.
Quando o burburinho finalizasse, o silêncio sepulcral retomaria o seu lugar, com os de cima a fazer companhia aos de baixo. Uma vingança macabra!
 Desapareceriam as flores sem cheiro, de plástico reles ou de estufa, para dar lugar a um colorido e bem cheiroso campo silvestre, que a Natureza se encarregaria de enfeitar, adornando o seu manto verde de relva pequenina, com lírios-bravos, pampilhos, malmequeres, papoulas, saramagos, cardos, alhos-cor-de rosa, campainhas, craveiros-do-monte e violetas, tapando com esse disfarce montês a transbordar de alegria silenciosa, o que então tinha sido um alvalade de renhida e tenebrosa batalha entre a hipocrisia e a sinceridade, cujo silêncio apenas é cortado pelo zumbir de uma abelha bamboleante em busca do perfumado néctar, com que vai encher os buracos hexagonais da sua dispensa, indispensável para os dias nefastos.
Reina a paz!
Os mortos não querem flores; querem ser bem tratados quando estão vivos.
Todos nós sabemos disso… e os governantes também.

António Figueiredo e Silva
Coimbra, 29/01/2015
ou:
www.antoniofsilva.blogspot.pt
      
 


 

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