quinta-feira, 16 de maio de 2013

EPÍSTOLA



A todos os filhos do meu país; aos
filhos do pai e da mãe, aos filhos
só da mãe ou só do pai, aos filhos de
muitos pais e aos filhos de ninguém.


EPÍSTOLA
(Vómito plangente e sublevado de um velho combatente)


Meu filho.

Estou velho. Sinto-me cansado, deprimido, revoltado e triste.
O cansaço, sei que é próprio da idade e terei que viver com ele até que nos meus vasos deixe de circular o fluído que me alimenta o corpo e anima a alma.
Deprimido porque a inconsciente e raivosa canzoada que se tem aninhado no topo da nossa pirâmide social só tem feito merda, cabendo a mim e a tantos como eu, cumprir sob coação, parte da responsabilidade por actos loucos que não cometi.
Revoltado e triste, porque trabalhei toda a vida para emergir e andar de cabeça levantada nas águas traiçoeiras deste mar de gente, apesar de todas as trafulhices e roubos indecentes e descarados que ao longo da vida me foram fazendo. Isto revolta, meu filho! E de que maneira!?
Agora sinto-me triste, apático e desalentado porque a minha idade já não me permite lutar, se bem que, o carácter de guerreiro que ainda resiste dentro de mim, por vezes mete as garras de fora e penso que “já não tenho nada a perder”, mas, contrariado recuo, porque temo pela tua existência, a qual sei que não te vai ser nada fácil; vai ser uma vivência esclavagista, penosa e aflitiva, onde só os sacanas, os descarados, os ladrões e os vigaristas, se vão safar; se não tiveres engenho para ser mais um entre os outros, prepara-te para o sofrimento. A piedade e a condescendência serão palavras riscadas da face da terra.
Regurgitei no teu espírito o que de melhor pensei saber e sob as mais distintas linhas da vida: científica, ética e moralista. Pela minha experiência e pela dos outros, que me foi transmitida, procurei temperar a tua personalidade para que a sua dureza só pudesse quebrar e nunca torcer, distinguindo-se sempre pela sua verticalidade, ainda que injustamente calúnias viessem cair sobre ti numa tentativa frustrada de te amarfanhar, de te restringir o fôlego até ao último suspiro.
Fiz o que pude para te deixar alguma coisa de palpável, não para que depusesses as armas do trabalho e da honra, porém, para te ajudar a vencer a inércia da vida que no princípio é sempre mordente; é uma subida em que um pequeno ímpeto pode auxiliar muito. Pensei sempre desta maneira e agora que vejo claro no negro, sinto com pesada amargura que algumas das minhas conjecturas me saíram goradas. Tenho a sensação de que no verde campo que há uns anos que tinha pela frente, a relva não foi raspada, mas siderada.
Os propósitos que para sempre trabalhei vão ser para ti uma dor de cabeça com a qual eu não contava. Todo o património que te lego só vai servir par te dar noites mal dormidas, assombradas por pesadelos e pensamentos inquietantes.
Agora que o governo anda a promover a desinfestação contra a “peste grisalha”, eu, não tardará muito, vou ter com a tua mãe que já se encontra do lado de lá há uns anitos; tu, apesar da tua formatura e formação, desempregado ou com uma ocupação que mal dará para o teu sustento, o que te deixei só serve para pagares impostos, que talvez não suportes, infernizando-te ainda mais a vida. Escrituras, Impostos de Selo, Impostos de Transmissão, Impostos Municipais, Impostos de Impostos e outros Impostos que a minha senilidade já não me permite lembrar mas que julgo serem necessários, contudo, poderiam ser mais consensuais e humanamente suportáveis, se não fosse e incapacidade da corja de ladrões e incompetentes que nos tem rodeado. Estas coisas meu filho, não permitem que eu morra em paz.
Já nem sei se aquilo que fiz o deveria ter feito, ou se o que te ensinei não foi colhido no universo do erro onde na penumbra da traição a minha barca da ignorância boiava sem eu saber. Agora talvez tivesse pensado de forma diferente, não sei!?
Não por culpa minha, mas quando “embarcar”, deixo-te um mundo e acima tudo um país, onde a sobrevivência é uma aventura de corsários onde a espada é o dinheiro.
Olha, se não suportares uma vivência condigna, sê como os outros que, mesmo enveredando pelo caminho do erro, da vigarice, da corrupção, da mentira, da falsidade e da vadiagem, são os que se estão a safar.
Tardiamente cheguei à conclusão de que a melhor herança que te posso deixar é a tua liberdade de pensamento e tua opção de escolha, nada mais.
O resto foi em vão. Lamento!

António Figueiredo e Silva
Coimbra, 16/05/2013
www.antoniofigueiredo.p.vu





  
   

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