A “CRISE” (Pedreiros mai´las “pedreirices”)
Quando
a responsabilidade no que se faz,
não
é vista como um compromisso,
o trabalhador
sujeita-se a cair na necessidade e
a transformar-se
numa sanguessuga do esforço alheio.
(A.
Figueiredo e Silva)
A “CRISE”
(Pedreiros mai´las “pedreirices”)
A narrativa que abaixo vai ser cavacada, não foi só
para triturar o tempo; é uma narrativa fundamentada num acontecimento verídico
constatado por mim.
Passou-se numa pequenina, mas engraçada aldeia, denominada
Vila Verde de Oura, pertencente ao concelho de Chaves, onde possuo um pequeno “castelo
medieval”.
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Arca do Soberano |
Por imposição
relativa, para evitar que a força da gravidade pudesse vir a derribar uma
parede construída em granito bruto, empilhado na ausência de cimento há mais de
trezentos anos, tive necessidade de contactar com “artistas” (pedreiros) que se
diziam entendidos na matéria de movimentar e equilibrar com segurança, pedras
de granito de grande peso, a fim de reforçar o “fóssil”, porém de venerável
estrutura, com indescritível valor afectivo para mim, que sou uma pessoa
conservadora dessa virtude – se, como tal, pode ser considerado - materialista
e achacado à conservação do envelhecido.
É daqueles “monumentos”
em que cada calhau tem uma história p’ra contar.
Traçada a
estratégia e assente a convenção dos trabalhos a efectuar e o seu custo com o
empreiteiro, este prontificou-se e enviar no dia aprazado, empregados seus para
consumarem os trabalhos de conservação e restauro.
Ás oito da
manhã do dia planeado, lá apareceram. Eram dois. De boné enfiado na tola,
cigarro dependurado ao canto dos queixos, munidos de duas marretas, duas alçapremas,
dois cinzéis, uma fita métrica e uma colher de pedreiro.
Ao ver todo
aquele aparatoso ferramental de “engenharia” com que se faziam acompanhar, pensei
logo, temos gente! Fraquinha, mas temos gente. Vamos lá a ver no que isto vai
dar – maquinei logo uma caldeirada de pensamentos entre a apreensão e a
incerteza.
Bem, entre
marretadas e cinzeladas lá deram início à labuta com tão aguerrida vontade, que
me deixaram atónito, derrubando as incertezas à primeira vista raciocinadas.
Pensei ter
constatado que realmente a crise tinha batido à porta daqueles fulanos, ao ver
o acelerado modo como trabalhavam para que a sua jorna não fosse carpida, e
certamente para que a faina nunca lhes faltasse e o patrão ficasse a lucrar algum.
É a crise -
pensei eu - face às evidências “aterradoras” que incansavelmente e sem pejo,
fulminam o apetite de trabalho do pachorrento povo português.
Todos os dias,
durante três dias consecutivos, a partir das oito horas da manhã começava a
peleja castigadora e vingativa contra as parêdes duplas de granito, que se
prolongava até às cinco da tarde, com uma hora de intervalo para o almoço, como
regula a lei e impõe a reclamação estomacal.
Segunda, terça,
quarta… Quinta-feira (?), sem qualquer satisfação, não apareceram os “trabalhadores”,
que eu pensara estarem afectados pela crise. Enganei-me.
Vim a comprovar
que realmente estavam, não afectados por uma perturbação de falta trabalho,
porém, por uma crise de desportivismo – semelhante à daqueles que largam tudo
para ver a bola.
Visionada de
outro aspecto, não foi mais do que uma crise de mioleira, que eles não
conseguiam debelar. A irresponsabilidade. Quando um vício se entranha, adeus
viola. A crise é mesmo certa.
Era dia “santo”
de caça, sendo por isso, um dos dias da semana que eles religiosamente consagravam.
Tocavam o trabalho por umas chumbadas às touregas, à carqueja, ou a rasurar o pelo
do “casaco” de algum coelhito, que pelos pinhais andasse distraído ou assolado
por alguma esfoira (transmontanismo= caganeira).
Apareceram no
dia seguinte, como se nada houvesse acontecido.
Ao serem interpelados,
secamente responderam:
- “Sabe, é que
às quintas-feiras é dia de caça e nós não trabalhamos.
- Ah, tá bem,
respondi.
Que poderia eu fazer, se, para
executar o trabalho deles, não havia muito por onde escolher?!
Com algumas burricadas
interpoladas pelo meio, que até redundavam em prejuízo do patrão, deixaram-me
tão “atulhado”, que tiveram de zarpar. Foi o patrão que se obrigou a finalizar
o serviço, lamentando-se da pouca sorte que lhe havia acertado.
Coisas da “crise”.
António
Figueiredo e Silva
Coimbra, 20/02/2022
http://antoniofsilva.blogspot.com/
Nota:
Faço por não usar o AO90
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