UMA FARTURINHA!
O
cérebro humano não é criterioso; com tanta “fome”
por
aí a cavalgar e ainda existe quem não valorize
a
fartura e despreze a qualidade.
(António Figueiredo e Silva)
UMA
FARTURINHA!
No
meu tempo de antanho, não era assim esta farturinha! Louvado seja Deus e a Sua
obra prima! – E o progresso da ciência e da tecnologia aplicadas à produção alimentar!
Havia umas estranguladas vendas, uma espécie
de mercearias, espalhadas pelos rossios das pequenas aldeias, onde podíamos
observar os lentos movimentos no despacho sem pressa, de umas bacalhoeiras de
tamancos e avental, instaladas atrás dum balcão tosco e repleto de chavasquice,
apoiadas pelos seus “homes”, de chancas ou botas de atanado e cigarro colado a
um canto dos beiços, segundados por um ou outro descendente, que lá iam
vendendo umas folhas de bacalhau, azeite - já na altura falsificado pelo
azeiteiro - vinho “cristão”, cujo baptismo, na época, era feito com água do
poço poluída, - com ou sem ovos de mosquito à mistura - ou da fonte, cuja alquimia
era concretizada ao anoitecer, sob um ritual místico e de maçónico secretismo,
onde só podiam estar presentes alguns membros do clã. A confirmação ou crisma
da zurrapa, era comprovada pelos bêbados das redondezas, calculada em função
quantidade que necessitavam de “buer”
para ficarem irresponsáveis ou agressivos, com grandes hipóteses de acabarem à
traulitada. Era, de vez em quando havia diversão circense, para animar o
pagode.
Além disto, eram comercializados queijo,
figos sêcos com recheio de “carne”, amendoins, tremoços salgados, (p´rá pingolêta), uns carrinhos de linhas (nalguns já faltariam uns metros, que
teriam sido enrolados num bocado de papel mata-borrão e vendidos por dois
tostões), elásticos para as cuecas, colchetes, açúcar, arroz, massas, sardinhas
enlatadas, abanadores e vassouras de piaçaba e mais umas coisitas que, grão-a-grão,
iam enchendo papo aos taberneiros.
Os meus olhos não se regalavam com a
fartura de “tudo” e a esmerada qualidade que se pode ver na fotografia inserida;
isto, antigamente, era suposto ser uma miragem; além de miragem, um pecado, um sacrilégio,
que no Domingo mais próximo “imperativamente” tinha que ser confessado ao abade
lá da terra, sob a pena de ir para o Inferno quem não o fizesse, porque, o
pecado pode ser praticado, além de palavras e obras, igualmente por pensamentos
– e muito mais quando são libidinosos ou lambões.
Não, não havia cenouras, pepinos, pimentos,
curgetes, batatas, beringelas alhos, couves-flor, brócolos, tomates, e salsa,
durante todos os dias do ano; só nas épocas sazonais, e quem tinha; não se encontravam
cebolas nem alhos aos montes nesses tristes arremdos de mercearias. Actualmente,
em qualquer mini-mercado, encontramos tudo isso, até umas palavrinhas de lembrança
mercantil, depois de havermos revelado o nosso almoço, “num quer alhos p’ró bacalhau que vai grelhar”? Tudo isto, sem tornar necessário recorrer às
grandes superfícies.
Naquele período de dura carência, uma mercadoria
que nunca faltou, foi aquela, cuja natureza fazia parte do sector das “cihchas”;
O CHOURIÇO. O enchido que sacia o bandulho e satisfaz a alma quando a quentura
aperta, e ainda hoje o mais apreciado da maioria da população portuguesa. Doméstico,
que ao tempo era de mais confiança e mais em conta; não obstante a sua dureza,
também não constituía o menor impedimento para quem bem mascava ou então da
marca Izidoro, para as mais fragilizadas dentições ou simples, porém calejadas,
gengivas; para estes últimos, estou como dizia o meu falecido pai quando eu o
questionava sobre as suas matracas gengivais; olha, filho, “Quando Deus tira os dentes, o Diabo
abre as goelas”.
Concluindo: em termos de “paparoca”, as mordomias
que tínhamos não eram em nada, comparadas com as realidades e regalias que hoje
se nos ostentam; nem na variedade, nem na quantidade, e muito menos na
qualidade, que… é de bradar aos Céus, com vontade de entrar nos Infernos!
Tardiamente cheguei à conclusão, que antes
pensava ser mentira, mas afinal, para meu desgosto, concluo que é verdade; Deus
é mesmo “divertido”; “dá
pão a quem não tem dentes”.
E agora uma recomendação: deixem as grandes
e comprem nas pequenas superfícies; também têm de tudo com distinta qualidade e
o atendimento é mais personificado.
António Figueiredo e Silva
Coimbra, 09/05/2020
Nota:
Não
uso o AO90
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