"HISTÓRIA" NATALÍCIA
Imagina o filho que queres ter,
para imaginares o pai que deves ser”.
(Moisés Doxos)
”HISTÓRIA” NATALÍCIA
(A prenda)
Meados de Dezembro. A temperatura era
baixa e vergastada por um ventinho cortante que já fazia arrefecer as pontas
das orelhas e dava uma côr vermelha apalhaçada à ponta do nariz, enquanto um
pingo renitente esperava o meu descuido, que não deixei adormecer.
Tudo
isto, senão mais, para lembrar de que é época natalícia, em que as pessoas aparentam
ser mais dóceis – ou fingem - e igualmente
permeáveis ao sentimentalismo, que durante o ano lhes passou de raspão.
O
céu estava com cara de poucos amigos, pintado de com uma tonalidade cinzento-escuro,
afirmando a sua gana em descarregar umas presumíveis bátegas de água destilada,
para molhar os incautos, refrescar os miolos aos “burros” e tornar viçosas e mais tenras as hortaliças destinadas
à consoada, o complemento habitual do fiel amigo, naquela noite imprescindível,
(para quem pode) onde, além da lareira, a ceia é marcada pelo afectuoso
aquecimento do agregado familiar – por
infortúnio há quem o não consiga - reunido à volta de uma mesa (nova ou velha
não interessa), em que o tempero principal é a manifestação radiante de
contentamento entre os presentes.
Ainda
não era meio-dia, mas já o meu estômago roncava danado a pedir adiantada, a
costumeira “receita” do meio dia (o almoço). Nesse dia não iria ter sorte,
porque, como não me encontrava em casa, ponderei enganá-lo com qualquer coisa
mais frugal, como uma torrada ou um pastel qualquer, para lhe mitigar o seu
nervosismo por algum tempo.
Tinha acabado de estacionar a minha
“chicolateira” e deslocava-me em marcha vagarosa com destino ao café lá do meu
burgo, situado num dos rossios mais afamados da minha parvónia, de que distava uns
metros do parqueamento.
Ia absorto com as minhas meditações, quando
sinto que alguém me toca ao de leve nas costas e me fez descontinuar a marcha.
Viro-me
e contemplo com inusitado espanto e alegria, uma criatura que já não via há
longo tempo - mais propriamente há uns anos. Fiquei eufórico de exultação – por
vezes também há surpresas agradáveis na vida.
Fico
extasiado ao vê-la, agora com a florida idade de catorze ou quinze anos. A sua
fisionomia pouco ou nada mudou. Os olhos continuavam com o mesmo brilho de
quando era mais criança; eram duas pérolas azúis como o céu, a marcarem a face
angelical adornada por uns cabelos loiros como os trigais no verão; apresentava
o mesmo sorriso simples, mas vistoso, de quando era mais menina; muito calma e
reservada na comunicação, porém com uma simpatia cativante.
Fiquei
contente de entusiasmo ao vê-la. Trocámos um afectuoso abraço familiar e demos
início a uma conversa que deveria ter durado uma meia hora, espaço em que a
minha pança se cansou e deixou de importunar-me, iniciando, ao que parece, uma
greve de fome – que é das mais fáceis; de sede, que eu saiba, nenhum “herói”
até hoje, se atreveu a fazê-lo.
Bem,
o certo é que, naquele espaço de tempo, a cavaqueira, como se costuma dizer,
deu pano para mangas. Desde coisas boas, a coisas menos boas, falámos de quase
tudo.
No
meio das histórias e historiêtas, a palratório foi povoada por alegrias e
desaires, dramas e comédias, que ela foi desafogando com soberbo recato, uma
das suas grandes virtudes - que a Natureza lha preserve. Algumas mexeram com o
meu estado de espírito, pois tenho-me como uma pessoa sensata e de bom íntimo,
não deixando, porém, de defender-me e combater com acérrima raiva, quem ouse
indelicada ou abrutalhadamente, entrar no meu espaço interior ou familiar.
Esta
de mexer como os meus sentimentos é que deu origem a esta escrevedura, que
parece não dizer nada a muitos, mas tenho a certeza absoluta de que vai dizer
muito a alguns que andam com a cabeça no ar por causa de uma “maçã”, quem sabe,
já bichada. No final de contas, esta
espécie de cronografia não é mais do que uma mensagem natalícia para bater à
porta da choupana onde habita consciência, quiçá criogenada, daqueles que não
têm a noção da importância que o amor paternal pode ter na formação intelectual
e na estabilidade emocional do agregado familiar - com maior incidência nos
filhos.
Então Maria - assim se
chamava a menina. No meio de toda a nossa ladainha, aflorou à minha percepção
que te sentes um bocadinho tristonha. Terei razão?!
Após
uns momentos de reflexão, retomámos por alguns instantes uma conversação já
mais profunda - que para aqui não vou chamar – e, em tom de desabafo, molhada
por algumas lágrimas “rebeldes” que, sem ela dar conta, lhe desciam pela
cândida face rosada:
-
Aaahm! Um bocadinho – respondeu, com o seu olhar desgostoso, direccionado para
o nada!
Um
pouco abanado por dentro, pensei dar por terminado o ameno diálogo, porém,
lembrei-me de fazer uma observação de positivismo e alento:
-
Deixa p’ra lá que agora é Natal e dias melhores virão.
- Olha
Maria, por falar em Natal, aproveito para fazer-te uma pergunta:
-
Qual era a prenda de Natal que tu mais desejavas?
Maria
olhou para mim, com uma expressão triste e os olhos rasos de lágrimas, e, com
as suas a tremer, agarrou nas minhas mãos e respondeu:
Bem
sabe que não sou muito exigente; a prenda que eu mais desejava era que meu pai
voltasse para a minha mãe, passássemos o Natal juntos e depois festejássemos um
Natal, todos os dias, até sempre!
Ao
ouvir estas palavras, até a vontade de comer me passou integralmente.
Ambos
melancólicos, atados por apertado abraço, despedimo-nos.
-
Adeus, Maria, gostei de ver-te.
- Eu
também gostei de o ter encontrado. Adeus. Até uma próxima.
Moral
da história:
HÁ “PRENDAS”, QUE DINHEIRO ALGUM PODE
COMPRAR.
António
Figueiredo e Silva
Coimbra,
22/12/2019
Obs:
Não faço uso do AO90
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