RECORDAÇÕES DA FORÇA AÉREA PORTUGUESA (VIII)
RECORDAÇÕES DA FORÇA AÉREA PORTUGUESA
(VIII)
(AB5 – Nampula – Moçambique)
As recordações são idênticas a fios enleados, cuja desarrumação é uma constante que as persegue; quando, com beatificada paciência, eu enceto o seu destrinçar, é que deparo com a força quase infinita da dimensão que os liga. Então, aproveito para com eles, no hoje, pescar e reconstruir realidades do passado, numa tentativa vã de querer agarrar o impossível. Retornar ao período inicial - loucuras emocionais de velho doido varrido!
Agora,
que estou praticamente com setenta e sete anos, e a senilidade ou a Doença de “Alzheimer”
se esqueceram de passar a ferro o meu poder de memoração (até ao momento!?), surgiu
esta oportunidade de também me recordar desta “simpática” fisionomia; se por
bem ou por mal, não cabe a mim julgar. Apenas posso afiançar que não era “dançarino”.
Infelizmente teve o óbito num acidente com o avião que pilotava (Harvard T6 G),
pelo que me chegou aos ouvidos, numa missão de bombardeamento no Planalto dos
Macondes.
A
vida é assim. Todos andamos a uma laminar distância do “Paraíso Celestial” e
cada um embarca na vez que lhe cabe, sem apanhar secas em longas filas ou na
torrefação fúlgida do sol, em formaturas que com alguma indulgência e
compreensão, teriam sido desnecessárias.
Bem,
mas da minha parte, apenas cabe dar rédeas soltas ao passado, pavimentando algumas
emoções calosas que remanescem no presente, com umas pazadas de lembranças distintas
que variam entre o bom, o mau, o feio, o irrisório e o escusado (não tem nada a
ver com filmes de “cowboyada”).
Deploro
que muitos já não se encontrem a inalar o oxigénio poluído desta atmosfera
azulada que nós temos vindo a conspurcar, para poderem desfrutar de um pouco de
prazer e certificar as “parvoíces” memorativas que pr’aqui disponho, num
desabafo aberto e sem timões de qualquer ordem, onde a minha emancipação de “aboar”
não é condicionada por nenhuma turbulência, a não ser pela veracidade dos
factos. Esta deve obediência à verdade, e eu primo por isso.
Ao
tempo, o “sorja” Goular ou Goulart
(ao certo, não sei como escrever), era o encarregado da gestão da messe dos Especialistas
no nosso “reles” aquartelamento, situado o edifício do Sporting Club de Nampula.
Alguém
se lembra?
Durante
o “REINADO GOULARDIANO”, devido a uma má gestão, mais propositada do que por força
das circunstâncias, foi fornecido o pior serviço de nutrição jamais visto
naquela messe; não pela confecção (o Ti Manel Cozinheiro lá ia fazendo o que
podia, com pouca limpeza, é verdade), porém, pela qualidade dos produtos
adquiridos - se bem que o Estado contribuísse com o suficiente para uma alimentação
cuidada e com qualidade.
Saturados
que estávamos de “comer” e calar, um dia alguém ventilou fazermos um
levantamento de rancho. No dia aprazado, as ventosidades estavam a favor, a
começar pelo carburante, que era um reles peixe frito com arroz de tomate, cujo
“barbatanas” era pescado nas lagoas e os naturais de lá, usavam-no muito, para,
depois de escalado, ser sêco ao sol com moscas à mistura e posteriormente ser
consumido. O oficial de dia era um ranhoso, magrito, de voz com som anasalado,
que transportava a inteligência nos galões, (já nem me lembro do nome), serandilhava
pelo refeitório como uma vespa aflita, sem tomar uma posição para dar fim ao justo,
contudo silencioso, “motim” – por certo ainda existem alguns que se vão recordar
destas cenas amacacas.
Então
resolveu o patêgo, recorrer ao major Santos Gomes
(2º Comandante do AB5), para por fim ao “litígio” silente, resultante da nossa
negação à ingestão da “lavagem” confeccionada para bácoros, que nos estava a
ser impingida.
Esse
distinto sr., que lamento já cá não estar para ler esta narrativa, em vez de
procurar averiguar a verdade dos factos e preceder a uma justiça condigna, ordenou
a formatura a todos os Especialistas no átrio do aquartelamento.
Ataviado
de camisa de manga curta, calções e meias até quatro ou cinco dedos abaixo dos
joelhos, sapatos castanhos espelhados e boné na cabeça, como uma barata tonta
cirandava de um lado para outro, com fisionomia austera, cuja tez trigueira mais
lhe acentuava mais a rigidez fisionómica de militarista galante, perante os fracos.
Depois
dos rituais bélicos para esse fim, e após uma “bem” salmeada homilia de bom
militar, colocou-nos em formatura, debaixo de uma canícula do caraças, na
posição de descanso (vá lá, vá lá!?), por um “curto” período de tempo, de mais
ou menos duas horas, duas horas e meia.
Enquanto
isso, andava de um lado para o outro, lançando-nos um “fulminante” olhar de soslaio,
embutido numa cara de poucos amigos.
Alguém
se recorda?
Se
a todos os que “engrossaram” aquela formatura e ainda estiverem vivos, se
esqueceram, eu estou aqui precisamente para avivar essas falhas de memória. Para
aqueles que desta vida zarparam já não tem qualquer efeito.
Eu
sei que na vida há circunstâncias boas e más; porém, existe uma diferença entre
ambas; enquanto que a primeira nos baliza o íntimo, a segunda instrui-nos; mas
nenhuma delas é fácil de esquecer.
E
eu, não esqueci o major Santos Gomes.
António
Figueiredo e Silva
Coimbra,17/06/2021
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