CONVERSA AO OUVIDO DA JUSTIÇA
Se, por vezes, o
juiz deixar vergar a vara da
justiça, que não seja sob o peso das ofertas,
mas sob o da
misericórdia.
(Miguel Cervantes)
CONVERSA
AO OUVIDO DA JUSTIÇA
Hoje,
deu-me na moleirinha, despender uns minutos de conversa contigo, por isso,
ouve, fica calada e não digas nada.
Embora não sinta qualquer animosidade
contra ti, faço questão em alertar-te que tens andado a ser enganada, pela
observação que tenho feito à solidez dos trilhos por onde tens caminhado. Sei
que foste germinada para seres recta e imparcial nas tuas decisões, ligeira no
teu andar, comedida na tua prodigalidade e cumpridora dos preceitos imanados
pelo desejo colectivo de uma sociedade coerente.
Foste concebida com os olhos mundificados
e bem abertos, livres estrabismo, ambliopia ou ramelas; outorgaram-te uma
espada de dois gumes supostamente aguçados, para que que pudesses cortar a
direito com qualquer dos lados; apetrecharam-te de uma balança para aferição da
consciência decisória quando por força das circunstâncias é indispensável a sua
acção interventiva.
Contudo, apesar de tudo isso, tens andado a
portar-te muito mal, porque das virtudes que há bocado tagarelei, não as tens
cumprido cabalmente; tens fracassado e as tuas falhas têm desgraçado muitos
elementos da comunidade que devias defender com paridade nos deveres e nos
direitos; ora isso, perfeitamente, não tem acontecido.
Mas está descansada que não vou
generalizar, porém, é inquestionável e tu sabes que andam muitos gatunos
alforriados a passear-se de peito inchado, reclamando uma inocência impostora,
enquanto miseráveis pilha-galinhas, por dois reis de mel coado, estão a ver o
sol aos quadradinhos.
Agora vou dizer-te porque é que isso
acontece, mas afina-me esses ouvidos.
Há muitos anos, aquando da tua concepção,
sim, porque já és mais velha do que o cagar dos cães, propositadamente foste
enganada por consciências insanas, vazias de carácter, de justeza e de moral,
em que os interesses sempre se sobrepuseram ao civilidade, numa franca adopção
filosófica do, “primeiro eu, segundo eu e depois tu, se ainda houver”, cuja
doutrina se tem mantido até aos nossos dias, porém com acentuado e quase
incontrolável crescimento. Para que este estado de coisas pudesse ter vingado e
proliferar, enganaram-te; a espada com que te “premiaram”, tinha um dos seus
lados rombo, e até hoje, penso que nunca roçou no esmeril da coragem; a balança
que orgulhosamente seguras, muito embora os seus pratos gozem da mesma
equivalência, os pesos que te dão para neles colocares, por vezes são
falsificados, na sua massa específica; para mais agudizar a tua
imponderabilidade, meteram-te uma venda nos olhos para cercear a tua orientação
e não poderes guiar a ti própria, impondo-te a necessidade de seres orientada
pelo olhar cínico da manhosice que em amistosa conivência com os interesses de
quem te serve de guia, se propõem a falsear-te o carreiro que devia levar-te à
verdade e à razão.
Se quem norteia o teu percurso é de
moral duvidosa, discernimento flácido, permeável a quaisquer interesses políticos,
ideológicos onde as amizades e as conveniências têm peso, tu nunca poderás dar
bons resultados. É isso que tem vindo a suceder.
Existe uma intensificada barafunda entre
a verdade a mentira e razão, de tal maneira desordenada, que para um idêntico
procedimento submetido à tua doutrina e fundamentado com os mesmos argumentos,
nunca se sabe qual delas vai subsistir.
Compreendo que a culpa não seja tua; por
isso, espero que apareça alguém com coragem para te aguçar o gume rombo da
espada, atestar o recheio dos pesos da razão e da dúvida e desviar-te a venda
que te obstaculiza a visão; por último, queria sugerir-te que talvez seja
salutar substituíres a espada por um bordão de marmeleiro e que sem “antolhos”
te finjas de cega; é a única maneira que desfrutas para descobrir tramóias e poderes
dar umas bordoadas naqueles que tentam levar-te por maliciosos ou polémicos
caminhos.
Sabes, condicionados à tua letra, os
defensores não fazem tudo e os decisores fazem muito - por vezes muito mal.
Por hoje, permanece no teu pedestal a
matutar maduramente nas minhas palavras e verás que me vais dar razão.
António Figueiredo e Silva
Coimbra, 20/02/2019
www.antoniofsilva.blogspot.com
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