QUANDO EU MORRER...
QUANDO
EU MORRER…

Escusam de ir “visitar-me” com um
semblante carregado, para dizer-me o último adeus, quando eu já nada vos posso
oferecer a não ser um apático silêncio estampado numa fisionomia macilenta, que
podeis contemplar com algum pesar e reticente apreensão, imaginando com um arrepio
na espinha, o que mais tarde ou mais cedo vos espera – oxalá que seja tarde.
Desejo que seja o mais tarde possível, mas não pensem que é por me sentir
arrependido de ter morrido, mas apenas porque me tornarei invejoso e desejarei
o bem só para mim.
Porém, se a vontade aferroar o vosso ego
e aparecerdes, gostaria de sentir à minha volta os vossos rostos a transbordar
de cintilante e contagiosa alegria e não de carpimento fingido onde a arte
teatral - nalgumas pessoas - é persistente em manifestar-se; não irei gostar da
pronúncia ritualizada e cínica dos pareceres corriqueiros, “coitado que até era
bom homem“! Não porque não houvesse procurado sê-lo, mas porque certamente
muitas vezes não o foi, à vista talvez errada, de muitos - consequência da
têmpera com que a Natureza me dotou; como a quentura do sangue deixou de correr
nas minhas artérias, “estava um bocado amarelo”; ou ainda - após setenta ou
oitenta anos de vivência – num falso e escusado grunhido molhado de secreção
salivar, “ainda era muito novo p’ra ter batido a caçolêta”!!!
Deixem de lastimar o bicho, porra!
De qualquer forma, se tivestes algo que
pensastes ser benéfico para ofertar-me, tivesse-lo decidido enquanto eu me encontrava
lado cá, quando eu disso mais tive carência; depois já não sentirei carência de
nada; estarei bem, de boa saúde, e a usufruir de uma paz em toda a sua
plenitude.
Nessa altura, se olhardes para mim,
podeis atestar que até nem vou com cara de muito chateado, apesar de ter sido
compelido a entrar no ciclo da renovação cósmica. É a lei da transmutação e a
entrada no universo da igualdade absoluta. Tão absoluta, que até os magistrados
mais corruptos e mais insensatos, que por enquanto, fazem parte do nosso mundo,
sentarão o cú da sua inconsciência no duro e incómodo banco dos réus, onde
serão julgados sem toga.
Lá não haverá galões que me façam vergar
sobre o perigo de poder vir a sofrer espondilose psicológica; não existem
políticos interesseiros, gatunos e vigaristas que sofregamente se alimentem da
minha sudação e do meu sangue; não existem medalhas para distribuir a traidores,
nem louvores para oportunistas, nem perdão para ladrões; a existência de chulos
e filhos-da-puta é nulo.
Estou crente de que poderei cavalgar ou
voar por toda a eternidade, sem esbarrar com nenhum cabrão daqueles que, neste
mundo, de uma maneira ou de outra, me tentaram infernizar a vida; tenha ele
vindo das fraldas da serra da Estrela ou das agrestes planícies alentejanas.
Toda a pompa, todo o orgulho, toda a
luxúria, toda a riqueza e toda a vaidade, ficarão do lado de cá para alimento
dos tolos, como eu se calhar terei sido em algum dia, não sei!?
Sem qualquer crítica aos “consolos” de
cada um, sou avesso aos campos-santos; gostaria que as minhas cinzas voassem ao
vento que, por não poder ser enxergado, sempre marcarão por breves momentos a
sua presença, com uma dança suave de rodopiantes turbilhões cinzentos que em
pouco tempo se esfumarão a caminho da liberdade absoluta que eu durante a vida
sempre sonhei, mas nunca tive.
Ah, mais um aparte: luto!? Que
fantochada é essa? A carga do peso do sentimento de falta, não se reflecte no
cromatismo, mas no íntimo de cada ser humano! O resto é outra palhaçada, com a
qual não estou de acordo; mas come quem quer.
Dispenso bem aquelas onerosas coroas de
flores híbridas e sem fragrância - que valem menos do que um selvagem pampilho
ou uma áspera e bravia tourega - à sombra das quais muitos sanguessugam comodamente encostados ao peso da afecção do sincero pesar
de uns, ou do “primoroso” fingimento de outros. Círios? P’ra quê? Eu não
precisarei de luz mortiça, porque O Criador iluminará o meu caminho até à Sua
dimensão, onde eu, por toda a eternidade esperarei por vós com infindável
serenidade. Não tenhais receio por eu me apresentar de olhos fechados, como que
em onírica meditação; acreditem que não será por desconsideração que tenho por
vós, mas porque a escura luminosidade do mundo onde ides continuar a vegetar e
selvaticamente a guerrear entre vós numa renhida peleja até ao último ôlho,
movidos pelos remos da ambição, ofusca-me o olhar; além, naquela escuridão
aparente para onde me hei-de dirigir, também há luz; uma luz suave, ténue, mas
que convida a uma nova vida de paz e à harmonia. Nela embarcarei descansado e
não invejarei o infortúnio que ardilosamente e sem dardes por isso, cá fica a
corroer a vossa sorte.
António Figueiredo e Silva
Coimbra, 07/06/2016
Ou:
www.antoniofigueiredo.pt.vu
Epá, gostei bastante deste!! E uma editora a pegar neste autor, não há por aí?
ResponderEliminarVai desculpar-me somente agora responder ao seu comentário, mas tive que tirar um "curso" de internet para o efeito; sabe, sou cabeça dura.
ResponderEliminarAs editoras existem... se nós pagarmos.
Em 1997 editei o meu primeiro livro por conta própria e já me custou uns bons "fardos de bacalhau", mas consegui realizar para os gastos e ainda para comprar um computador.
Foram feitos 1000.
O livro foi gravado em áudio pela Biblioteca da Câmara Municipal de Vila Nova de Gaia, para que os cegos e amblíopes de Portugal, pudessem ter acesso.
Ainda hoje há quem diga, que está actualisado.
Título: DEIXEM-ME DESABAFAR (Crónicas de um crónico) de António Figueiredo e Silva.