O MEU SÓCIO COMPULSIVO
O
mais corrupto dos Estados
tem o maior número de leis.
Tácito
O MEU SÓCIO
COMPULSIVO
O tempo que
medeia entre o início da minha atribulada visita a este mundo e o momento em
que me encontro, tenho a dizer que durante este percurso, houve dias maus em
que o frenesim fazia o corpo tremer até entorpecer a alma, e dias bons, porém
em menos quantidade, em que a euforia, por vezes desmedida, procurava sanar as
feridas dos dias aziagos que foram em maior número; a saltar de pedra em pedra
para não bater com eles na lama, cá me vim equilibrando durante todo este tempo,
que no momento conclui a “bonita” soma (aproximada) de 26.299 dias da minha
existência; sim, porque dou conta de que ainda existo, quando não, neste
momento não estaria p’ráqui a teclar estas baboseiras, talvez entendíveis, para
entreter o pagode e aliviar a tensão reactiva que existe dentro de mim.
Apesar de ter comido pão que o Diabo
amassou, e com tenacidade ter conseguido afogar os infortúnios nas
oportunidades boas que a Natureza me concedeu, sempre alimentei uma ideia de autonomia,
que agora verifico ter sido transitória, digna de um tolo, de um indivíduo com
falta de miolos.
Fiz de tudo na vida, seguindo no entanto,
as mais elementares configurações de civismo, sem nunca me deixar levar em
cantigas, procurando manter sempre, segundo o alcance da minha visão, o que se
afigurava ser uma credível independência.
O decorrer da vida foi cavalgando no
lombo do tempo sem eu dar por ela, e, sem me ter apercebido, dei comigo no
patamar da lucidez onde a ficção já não tem figura; neste horizonte os factos
funcionam de maneira diferente e a pesagem dos problemas é feita com laminar
cautela. Aqui, ainda que tardiamente, descubro com frustrante resignação e
revolta, que realmente nunca gozei de emancipação absoluta; houve sempre a
existência de um parceiro, que, não por minha vontade mas por imposição de
circunstâncias inerentes ao foro social, se encostou a mim como uma rémora
sofregamente a chupar-me o suor e algumas migalhas. Em princípio ainda pensei
que o sócio era uma pessoa de bem, mas agora sinto-me decepcionado e ao mesmo
tempo, revoltado.
Este sócio, que não tem cara, aos poucos
tem arruinado a minha independência, por se imiscuir sem escrúpulos e de forma
abrasiva nas benesses que eu devia usufruir, obtidas por uma vida de trabalho,
para gozar de uma existência digna. Nada disso tem acontecido. Este meu sócio,
vem actuando a coberto da capa de uma democracia fingida, por baixo da qual
saliva e arreganha os dentes uma ditadura esclavagista sob a qual tenho vivido
muito tempo na dúvida da sua existência. Agora percebo que a democracia desse
meu parceiro é falsa e a ditadura não é para todos, sendo porém uma endemia que
ataca os mais franzinos.
Este meu quinhoeiro obrigatório sem
rosto nem moral, que tem permitido todo o género de falcatruas e injustiças, é
composto na sua maioria por figuras que nunca sentiram o aperto das grilhetas
decorrentes das agruras da vida, e por isso, não valorizam o sacrifício; são
doentiamente amantes da riqueza e do luxo, que fazem questão mórbida de
ostentar perante a submissão de milhões de escravos, vergados sob a pressão de
regulamentos feudalmente decretados e
protegidos pelo fantasma da coacção.
Este
meu sócio compulsivo, chama-se, Estado. A principal fonte das
minhas dores de cabeça – e de todos nós.
António Figueiredo e Silva
Coimbra, 24/04/2016
ou:
www.antoniofigeiredo.pt.vu
Comentários
Enviar um comentário