OS MORTOS NÃO QUEREM FLORES
Quando
agoniares alguém em vida,
não
te inquietes com o castigo;
a seu tempo, ele desabará sobre ti.
(?)
OS
MORTOS NÃO QUEREM FLORES
Ainda
que o título, e também a deducional dissertação que se segue, aparentem conter
uma fisgada de cinismo propositado, é verdade; não deixa contudo, de estar
dentro dos razoáveis limites da realidade, se nestas linhas forem esgravatados
alguns defeitos na formação da verdadeira essência do ser humano.
Tantos!!! Tantos embarcaram e
desprezivelmente foram mal tratados em vida! Muitos, que morreram na maior
miséria assistencial e afogados em inimaginável sofrimento psicológico, foram
até hoje “recordados” pelos seus algozes, pelo menos uma vez por ano; sob um
semblante carregado de remorsos, ostentam ramos de flores que eles não cheiram,
“salpicadas” por um carpimento fingido e sem tempero salitrado, que eles não
vêm, a balbuciar umas ladainhas que eles não ouvem; este manhoso aparato é só para
a comunidade ver e não poder censurar entre si lá na terrinha, em encontros
furtuitos, onde a crítica leveda sobre a fornalha atiçada de maldizer, num
grande alguidar de mexeriquice entre comadres, pela carência de novidades
construtivas; é normal, “eu ouvi dizer”…
Se bem que nunca haja desvivido, sinto
que deve ser deveras “penoso” ser-se maltratado em vida e atraiçoado depois de
morto.
Se houvesse a possibilidade de um juízo
final contemporâneo, os campos-santos seriam palco das mais aterradoras
batalhas campais, onde haveria um ajuste de contas do outro mundo, contra a
falsidade deste, que culminaria com a hipocrisia escalpelizada e posta a léu.
Lápides, tábuas carcomidas e lodosas com pregos ferrugentos cravados, pedras
dos arruamentos, velas e castiçais, e até lamparinas que há muito tempo não
viam o pavio aceso, tudo seria utilizado como apetrechos de ataque, perante o
olhar atónito dos vermes que rastejavam pelas bordas lamacentas ou arenosas das
tumbas, assombrados com o quadro dantesco que se lhes deparava, mas ávidos de apetite,
reclamando às suas presas putrefactas, o pouco ou nada que ainda haveria para
sugar.
Neste panorama mórbido, só se ouviriam
gritos de aflição no meio do ranger sêco e cavernoso de alguns dentes há muito
tempo sem mastigar e o som grave entre as ossadas que andavam pelo ar chocando
entre si e os seres deste mundo, contra os quais foi desencadeada a peleja.
Quando o burburinho finalizasse, o
silêncio sepulcral retomaria o seu lugar, com os de cima a fazer companhia aos
de baixo. Uma vingança macabra!
Desapareceriam as flores sem cheiro, de
plástico reles ou de estufa, para dar lugar a um colorido e bem cheiroso campo
silvestre, que a Natureza se encarregaria de enfeitar, adornando o seu manto
verde de relva pequenina, com lírios-bravos, pampilhos, malmequeres, papoulas, saramagos,
cardos, alhos-cor-de rosa, campainhas, craveiros-do-monte e violetas, tapando
com esse disfarce montês a transbordar de alegria silenciosa, o que então tinha
sido um alvalade de renhida e tenebrosa batalha entre a hipocrisia e a
sinceridade, cujo silêncio apenas é cortado pelo zumbir de uma abelha
bamboleante em busca do perfumado néctar, com que vai encher os buracos
hexagonais da sua dispensa, indispensável para os dias nefastos.
Reina a paz!
Os
mortos não querem flores; querem ser bem tratados quando estão vivos.
Todos
nós sabemos disso… e os governantes também.
António Figueiredo e Silva
Coimbra, 29/01/2015
ou:
www.antoniofsilva.blogspot.pt
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