A PASSAGEM DE ANO DE UM INDIGENTE
Viver é a coisa mais rara do mundo.
A maioria das pessoas apenas existe.
Passagem do ano
de um indigente
Dia
31 de Dezembro. Inverno. Os neons
acendem-se mais cedo e as lucernas de leds
sobreviventes do Natal, teimosas trepadeiras de árvores e montras, ajudam à
festança de quem pode e convidam ao almejo quimérico as almas mais débeis
daqueles para quem o sol da vida não sorriu; inidentificáveis, sem família e
sem amigos, estes verdadeiros cosmopolitas são o pão nosso de cada dia em
muitas esquinas da nossa urbe.
Encharcado
e cheio de frio, sentou-se, pousou a seu lado o copo de plástico rachado e embalsamado
por uma capa de acastanhada conspurcação, o banco ambulante aonde algumas almas
mais caridosas durante o dia fizeram o depósito de umas moedas a fundo perdido,
na mira de ganharem algumas indulgências ou por virtuosa caridade.
Com
as mãos tiritantes encardidas pelo surro, enfiou os dedos nos bolsos do velho
sobretudo e rebuscou nos restos mortais de um forro de cetim, mais algumas
moedas que calmamente juntou às do púcaro, sua máquina registadora que há muito
tempo “comprara” num caixote do lixo. Estava na hora de fazer a contabilidade
de mais um dia de luta pela sobrevivência. Com resignada calma, confiou a face
relvada de barba pardacenta e começou a contagem metódica, com acentuada
repetição de cada quantia, escorraçando com esta repetência a consumação de
algum desacerto contabilístico.
Claudicante,
pois o cabrão do reumatismo ferrado como um cão raivoso, nas suas dobradiças
esqueléticas rompidas pela idade não o largava, dirigiu-se por uma viela
estreita onde havia uma porta antiga mas bem tratada encimada por um ramo de
louro já meio ressequido pelo tempo e cagado das moscas, um sítio limpo mas
tosco, onde pôde rilhar um pão na companhia de uma sardinha frita - mais
queimada do que frita - e uma sopa quentinha, que lhe arrolhou por algum tempo
os roncos cavernosos de estômago, até ali irrequieto. Por ali ficou a enovelar
o tempo até que aparecesse uma estiagem; por fim, pagou e saiu, com ar
tristonho, embrulhado no silêncio que consigo trouxera, apenas fendido pela carência
sonora para pedir e pagar.
Ainda
caíam alguns salpicos, mas ele vagarosamente saiu, apoiado no seu velho pau já
polido pelo uso, em direcção ao costumeiro pouso noturno onde se sentou
encostado à coluna esquerda da porta de entrada; com uma calma aparente e
enigmático brilho nos olhar, enfia a mão direita por dentro do poido sobretudo
e com expressividade de incontida satisfação puxa de um pacotito de plástico
transparente meio cheio de beatas que durante o dia catara no chão, desfá-las
sobre a palma da outra mão, rapa de uma mortalha, coloca nela o tabaco
dedilhado, dá-lhe duas lambidelas e constrói com alguma perícia um tosco
cigarrito que inflama com um fósforo, para alimentar o velho vício; puxada
seguida de baforada, olha com admiração a suave e elegante dança da fumaça
branca a diluir-se no ar por entre argolas e fitas curvilíneas numa liberdade
sem limites, que talvez ele ansiasse por possuir.
Levanta-se
de novo, e, cambaleando sobre meia dúzia de passos, arrebanha de dentro do
caixote do lixo, seu armazém diário, uns cartões que haviam servido de
embalagens de produtos made in China, com os quais daí a momentos fará o
acolchoamento do seu catre.
Alinha-os
no chão, mais uma pausa para a ritual cigarrada, enquanto desamarra o cordel de
uma outrora nova mochila, de onde tira uma manta que lhe vai servir de fraca
carapaça contra o frio na qual se enrosca para sonhar que ao romper do dia o Ano
Novo talvez venha a ser melhor.
Nem
o rás- trás- pum dos foguetes, nem os testos das panelas nem a algazarra
etílica o fazem perder o sono; adormece a sono solto como um justo.
Ao
romper da manhã, quando a coroa do astro-rei, iniciava a albificar a escuridão
do céu, ainda mantinha a melhor posição que conseguiu para encher o tempo de
mais uma noite no queimante fadário da sua vida. Encolhido sobre a dureza do
chão acartonado e mal aconchegado pela aparente proteção da rasca manta, cinzenta
como a sorte que o guiou àquele estado, mais uns míseros farrapos, à entrada do
prédio que o protegia da chuva copiosa que sem piedade que do céu caía, estava
aquele vulto escuro, tão enroscado que mais parecia um ouriço-cacheiro a sonhar
não sei com quê e alheio à passagem de alguns “felizes” para o trabalho, ainda
ressonava a sono solto; de vez em quando movia os beiços por entre os quais
aparecia a ponta de uma língua rosácea a balançar com extrema lentidão, a jeito
de curioso espreitar, num gesto vagaroso e delicado, como se estivesse a
saborear uma grande lambarice. Depois, com rugas de satisfação a aflorarem por
entre sebosa barba de três ou quatro dias, parava novamente e continuava a sua
caminhada nos braços de Orfeu.
Já
dia claro, abriu um ôlho, depois outro, esticou os cansados tendões e as frouxas
fêveras e, tomando a posição de assentado, observou à volta enquanto o céu copiosamente urinava; com a cara turvada
de infinita tristeza, pôde comtemplar que afinal nada do que tinha sonhado
havia acontecido! Mais dias de peleja viriam para assegurar a sua existência.
E
nós, tristes indigentes também, inda pensamos como este miserável, que as coisas
mudam de um dia para outro, chancelando-o com imensas e às vezes desmedidas paródias,
mas isso nunca irá acontecer.
António
Figueiredo e Silva
Coimbra,
01/01/2014
www.antoniofigueiredo.pt.vu
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