O NATAL DA BURRA
Quem o seu não
vê, o Diabo o leva.
(ditado popular)
O NATAL DA BURRA
(história
verdadeira, passada numa vetusta aldeia transmontana)
Não
vou começar esta narração por, “era uma vez”... Porque este caso não é resultado
do imaginário, mas de uma situação verídica, em que pelo apurado sentido de
esperteza de uma burra velha, cheia de peladas e já castigada pela arduidade do
trabalho, alguém, por algum desleixo, ficou com o estômago aos coices, por não
ter considerado a argúcia asinina.
Aconteceu
no dia a seguir ao Natal. As serranias circundantes estavam coroadas de
imaculada brancura resultante de fortes nevões nos dias anteriores; uma brisa
sorrateira cortava o ar com as suas lâminas afiadas pelo frio do inverno e
teimava em entorpecer as mãos, apesar das luvas de pura lã, urdidas ao
conhecido som crepitante da lenha que ardia na lareira durante os serões, entre
dois dedos de conversa solenemente cavaqueada. Há uns anitos era assim na
maioria das terras transmontanas nesta época do ano – e em parte, ainda hoje
continua a ser.
Um
casal, já meio rompido pela idade, cujos proventos para a sua sobrevivência e
dos familiares que ainda não haviam saído para a estranja, eram arrancados de alguns campos e courelas que
possuíam, à custa de um esforço esclavagista, debaixo do sol tórrido no estio
ou sob as condições friorentas invernais. Era uma amarga luta sem tréguas,
porque as reformas, mesmo miseráveis, de que hoje muitos se lamentam, ainda não
existiam. Era mesmo um tempo de sacrifício carregado penosamente sob o alpendre
da esperança.
Em
um dos terrenos que possuíam, havia algumas olivas, que através dos anos lhes
vinham garantido as azeitonas, acompanhamento nas refeições mais frugais, com
toucinho, presunto ou outro lambisco qualquer e escuro pão de centeio; além
disto, ainda fruíam da preciosa untadura chamada azeite, que servia para tudo,
até para mezinhas medicamentosas, no caso de furúnculos, emboxas* (bolhas) e outros maleitas variadas, cuja cura era
amparada por crenças em parte religiosas (o azeite bento) e noutra parte,
assente na medicina rural, adquirida através de gerações e passada verbalmente.
O
casal, principal interveniente nesta história, resolveu, no dia a seguir ao
Natal, ir apanhar azeitonas para o seu pequeno olival. Resolveram fazê-lo da
parte da tarde, porque ser menos penoso devido ao frio. Fizeram uma merenda
fora do comum, pois nesta ocasião sobram sempre muitas lambisquices; rabanadas, bolos de bacalhau, filhós de jerimu feitos
de uma abóbora tipo menina, uma garrafa de pingolêta de produção privada, sem
sulfitos nem água, arrearam e carregaram a velha e se calhar artrítica burra, e
puseram-se a caminho mais duas netinhas que na altura estavam com eles.
Chegados
ao destino, prenderam a burra a um olmo que certamente já havia presenciado a
passagem de romanos por aquelas bandas, junto deixaram a merenda e lá começaram
a dolorosa azáfama que atrás de si traz fatigantes dores lombares, a primeira
moeda com que se começa a pagar os bens fornecidos por aquele fruto; a azeitona.
Lá
foram andando curvados perante os frutos negros que com paciência iam pegando,
não sem que a brisa lhes arengasse aos ouvidos frias e irritantes preces
desistência. As netinhas, entre as brincadeiras pueris e risos inocentes, mesmo
fazendo de conta qua apanhavam azeitonas, lá iam apanhando algumas com a
promessa de cinco c’roas (vinte e cinco tostões) para bolachas de baunilha,
mercadas no “hipermercado” do Chafariz.
O
tempo a muito custo ia passando, até que os estômagos começaram com as suas
persistentes reclamações; certamente que estaria na hora de manducar alguma
coisa.
A
mais velha das meninas, pela sorrelfa dirige-se ao cesto, a caixa de pandora
onde tinha sido transportada a merenda, e, ao olhar, deparou com o pano de linho
grosseiro, esmerado protector da bucha, amarfanhado ao lado do cesto, no qual
apenas jaziam alguns papéis-vegetal meio lambidos e a garrafa do tintol numa posição ébria como que a
dormir a sono solto, no pleno gozo do conteúdo etílico que alimentava o seu
interior. Escapou, talvez porque a burra não viu o velho saca-rolhas encolhido
a um canto, no fundo do cesto. A burra, com aquele olhar repleto de infindável
calma asinina, ainda lambia a beiça regaladamente, com uma expressão nítida de
contentamento; uma expressão humanizada, na cara de uma burra.
-
Avó, avó – diz a mais velhinha - a burra comeu a merenda toda; só lá ficaram as puras migalhas!
A
avó, que era uma pessoa que gostava de coisas caricatas, no meio do desalento
ainda soltou em desenfreadas risadas; quanto ao avô, ao que parece, foi ajustar
as contas com a burra, que certamente pagou com o lombo a incúria de outrem.
O
remédio foi o regresso a casa para saciar a larica e diluir o nervosismo, que
não devia ser pequeno.
O
casal, já está no outro lado frio e desconhecido da vida há uns bons anos;
contudo, ainda restam as duas netas, que fizeram parte da “novela” e de vez em quando,
com sublime saudade e recordado carinho contam a peripécia aqui narrada.
Obs. Conto este facto, por duas razões: a primeira
é por a achar engraçada e a
saudade das pessoas
que conheci, assomar-se à minha
memória;
a segunda, é só para dizer que à
semelhança da
feito desta burra, todos nós temos também
muitas
burras e burros, a comer-nos a “merenda”,
por incúria nossa e ainda escoicinham.
*Leia-se
embotchas.
António
Figueiredo e Silva
Coimbra,
26/12/2013
www.antoniofigueiredo.pt.vu
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