O CORNETEIRO
O CORNETEIRO
de D. Afonso Henriques
O tocador de corneta é uma figura
cuja origem se desintegra na penumbra temporal e apesar dos avanços da ciência
não se consegue ainda determinar o seu nascedouro.
Sabemos que a corneta é um
instrumento popular e etimologicamente confere a quem a toca, o nome de corneteiro.
Por princípio, os sons emitidos por
este aerofone estão associados a um aviso ou a uma ordem, segundo o que antecipadamente
se convenciona, em função do compasso e da variação da sua sonoridade e dos
objectivos pretendidos.
Numa tarde de calmaria, quando o sol
estava a ser lentamente engolido pelo horizonte e já o manto da noite ameaçava,
enquanto um bando de pombas voejava espavorido, recusando-se a ser o jantar de
um milhafre que as perseguia, sentados num banco de paragem dos autocarros, eu,
minha mulher e um velho amigo nosso, garganteávamos dois dedos de amena
cavaqueira para matar o tempo e dissipar os pensamentos negativos que a vigente
crise nos inculca; como ele é “viciado” na criação e interpretação arabescos de
partituras, naquele momento era mesmo sobre música que estávamos a palestrar,
se bem que eu seja um podão no assunto acústico da harmonia. Limito-me a
ouvi-lo e a absorver o que a minha modesta compreensão permite, introduzindo de
vez em quando a minha “nota” de admiração ou curiosidade em função da sua tocata.
O maestro Tobias Cardoso, que em tempos passados regeu a Tuna da Universidade de
Coimbra e foi professor no Conservatório de Música da mesma cidade, é um bom discursivo
e um óptimo contador de histórias – já correu Mundo suficiente para isso. De
facto é agradável auditá-lo, porque a sua voz é serena e parla piano, não ferindo os tímpanos a ninguém.
Acontece que a determinada altura da
conversa, em que já não tagarelávamos de música mas da situação política cá
instalada - não me recordo em que sequência - perguntou-me se alguma vez me havia
contado a história d’O Corneteiro de D.
Afonso Henriques. Como apresentei o meu absoluto desconhecimento sobre o
caso, ele prontamente tratou de expor o argumento, de longa data conhecido por
si; achei tanta piada à parábola, pelo seu encaixe com a realidade de hoje, que
resolvi reproduzi-la.
No tempo da conquista do território português
aos mouros, todos sabemos que uma das formas de pagamento existentes eram os
saques, a pilhagem autorizada, onde as terras ficavam rapadas, as casas
despojadas e as pessoas mortas ou cativas para serem leiloadas por uns trocos
com vista à escravatura.
D. Afonso Henriques, para esse efeito, tinha um corneteiro
que, segundo as suas ordens, quando acabava a batalha, fazia soar a corneta
para os soldados darem início ao saque e voltava a tocá-la no momento de parar
a pilhagem que, ao que parece, era cumprido sob tenaz controlo Afonsino.
Aconteceu que, na última batalha
travada contra os “infiéis”, ao alarme dado pelo corneteiro, todos se lançaram ao assalto. Foi uma balbúrdia
terrivelmente assustadora; não houve porco que ficasse no seu chiqueiro, arca com
o seu grão, pipa com a sua pinga ou galinha no seu poleiro. Foi um saque de tal
maneira aceso e bárbaro que nunca parou, mesmo quando a já terra varrida. Isto
aconteceu porque o corneteiro não
fez soar a corneta com objectivo de acabar o roubo; é que ele próprio também
havia desaparecido.
O seu desaparecimento e o saque, de mãos dadas atravessaram toda a
História de Portugal e ainda hoje, os portugueses, atormentados, continuam à
procura do famoso corneteiro de D. Afonso Henriques.
António Figueiredo e Silva
Coimbra, 04/07/2013
www.antoniofigueiredo.pt.vu
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