EPÍSTOLA
A todos
os filhos do meu país; aos
filhos
do pai e da mãe, aos filhos
só da
mãe ou só do pai, aos filhos de
muitos
pais e aos filhos de ninguém.
EPÍSTOLA
(Vómito plangente e sublevado de um velho
combatente)
Meu filho.
Estou velho.
Sinto-me cansado, deprimido, revoltado e triste.
O cansaço, sei
que é próprio da idade e terei que viver com ele até que nos meus vasos deixe
de circular o fluído que me alimenta o corpo e anima a alma.
Deprimido
porque a inconsciente e raivosa canzoada que se tem aninhado no topo da nossa
pirâmide social só tem feito merda, cabendo a mim e a tantos como eu, cumprir
sob coação, parte da responsabilidade por actos loucos que não cometi.
Revoltado e
triste, porque trabalhei toda a vida para emergir e andar de cabeça levantada
nas águas traiçoeiras deste mar de gente, apesar de todas as trafulhices e
roubos indecentes e descarados que ao longo da vida me foram fazendo. Isto
revolta, meu filho! E de que maneira!?
Agora sinto-me
triste, apático e desalentado porque a minha idade já não me permite lutar, se
bem que, o carácter de guerreiro que ainda resiste dentro de mim, por vezes
mete as garras de fora e penso que “já
não tenho nada a perder”, mas, contrariado recuo, porque temo pela tua
existência, a qual sei que não te vai ser nada fácil; vai ser uma vivência
esclavagista, penosa e aflitiva, onde só os sacanas, os descarados, os ladrões
e os vigaristas, se vão safar; se não tiveres engenho para ser mais um entre os
outros, prepara-te para o sofrimento. A piedade e a condescendência serão
palavras riscadas da face da terra.
Regurgitei no
teu espírito o que de melhor pensei saber e sob as mais distintas linhas da
vida: científica, ética e moralista. Pela minha experiência e pela dos outros,
que me foi transmitida, procurei temperar a tua personalidade para que a sua
dureza só pudesse quebrar e nunca torcer, distinguindo-se sempre pela sua
verticalidade, ainda que injustamente calúnias viessem cair sobre ti numa tentativa
frustrada de te amarfanhar, de te restringir o fôlego até ao último suspiro.
Fiz o que pude
para te deixar alguma coisa de palpável, não para que depusesses as armas do
trabalho e da honra, porém, para te ajudar a vencer a inércia da vida que no
princípio é sempre mordente; é uma subida em que um pequeno ímpeto pode auxiliar
muito. Pensei sempre desta maneira e agora que vejo claro no negro, sinto com
pesada amargura que algumas das minhas conjecturas me saíram goradas. Tenho a
sensação de que no verde campo que há uns anos que tinha pela frente, a relva não
foi raspada, mas siderada.
Os propósitos
que para sempre trabalhei vão ser para ti uma dor de cabeça com a qual eu não
contava. Todo o património que te lego só vai servir par te dar noites mal
dormidas, assombradas por pesadelos e pensamentos inquietantes.
Agora que o
governo anda a promover a desinfestação contra a “peste grisalha”, eu, não tardará muito, vou ter com a tua mãe que
já se encontra do lado de lá há uns anitos; tu, apesar da tua formatura e
formação, desempregado ou com uma ocupação que mal dará para o teu sustento, o
que te deixei só serve para pagares impostos, que talvez não suportes, infernizando-te
ainda mais a vida. Escrituras, Impostos de Selo, Impostos de Transmissão,
Impostos Municipais, Impostos de Impostos e outros Impostos que a minha
senilidade já não me permite lembrar mas que julgo serem necessários, contudo,
poderiam ser mais consensuais e humanamente suportáveis, se não fosse e
incapacidade da corja de ladrões e incompetentes que nos tem rodeado. Estas
coisas meu filho, não permitem que eu morra em paz.
Já nem sei se
aquilo que fiz o deveria ter feito, ou se o que te ensinei não foi colhido no
universo do erro onde na penumbra da traição a minha barca da ignorância boiava
sem eu saber. Agora talvez tivesse pensado de forma diferente, não sei!?
Não por culpa
minha, mas quando “embarcar”, deixo-te um mundo e acima tudo um país, onde a
sobrevivência é uma aventura de corsários onde a espada é o dinheiro.
Olha, se não
suportares uma vivência condigna, sê como os outros que, mesmo enveredando pelo
caminho do erro, da vigarice, da corrupção, da mentira, da falsidade e da
vadiagem, são os que se estão a safar.
Tardiamente cheguei à conclusão
de que a melhor herança que te posso deixar é a tua liberdade de pensamento e tua
opção de escolha, nada mais.
O resto foi em
vão. Lamento!
António
Figueiredo e Silva
Coimbra,
16/05/2013
www.antoniofigueiredo.p.vu
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