O
VELHO MELRO DAS CERCANIAS DA SERRA
(Observações frias de um mocho)
Está a chegar a época do Inverno. As
condições climatéricas são imprevisíveis; os pardais já não esvoaçam com o desembaraço
que antes exibiam, as andorinhas zarparam para a sua aventura de milhares de
quilómetros deixando o céu depenado das suas engraçadas e rodopiantes
acrobacias, os ranhosos caracóis metem os “cornos” dentro de casa e os abutres
temem pela sua sobrevivência; até o velho melro, que foi o mais experto das
aves, quase deixou de exibir o seu estridente assobio e fica acocorado com ar
sorumbático, a um canto do buraco sêco de um velho castanheiro que outrora foi
manjar dos cupins.
A aproximação do Inverno fê-lo perder a
“voz”. Da fulgência irradiada pela sua negra, forte e lustrosa plumagem, apenas
restam umas penitas sem brilho e amarfanhadas, que servem de fraca protecção ao
seu canastro já envelhecido; foi a moléstia decorrente uma antiguidade
impiedosa que o contaminou; a epidemia da peste grisalha. Essa maleita
congénita a que nenhum ser vivo se livra, mas que os cegos de espírito ignoram,
e, em vazio, tenta num frustrado alento, ripar ao passado, tempo para
acrescentar ao futuro, esquecendo-se de que isso é um paradoxo.
Este infortúnio acontece a todos os
seres, e o velho melro das cercanias da serra também não ficou ileso.
Para agudizar o seu sofrimento, da sua prole
teve um filhote que descarrilou na sociedade da passarada e, sem se acautelar
dos passarões, lá ia alegre mas aparvalhadamente debicando umas minhocas e
petiscando umas formigas, até que um belo dia, abriu o bico demais e caiu na
desgraça da passarada, que elevou o tom dos seus assobios de irritação e o
obrigaram a refugiar-se na esterqueira do quase silêncio absoluto, assobiando
baixo e sozinho.
Com o desgosto, a velhice e o frio da
serra, o velho melro já pouco pia; a sua bravura esmaeceu! Calado, sem abrir o
bico e com ar tristonho olha para as minhocas apetitosas e luzidias, mas o
desgosto não lhe abre a outrora sêde no ataque e voracidade no apetite!
O seu bico amarelo e altivo, na última
temporada tem perdido o brilho e a consideração dos outros melros, e da
passarada em geral. Já não o adulam. Não precisam dele para nada. Aquela
criatura que noutros tempos dominava a encosta está a transformar-se em pasto
para os abutres (cangalheiros) que sobrevoam os hospitais, os lares e até
nichos particulares, na mira de que o coração de alguma padecente pare de bater
- é dali que vem o alimento para a sua família. E, subjacente aos “abutres”,
com extrema paciência, as formigas também esperam pela sua retaliação prontinhas
para diluir aquele “monstro” em ácido fórmico.
Estes pensamentos aterram-no! Cindem-lhe
o refrigério, e, lá no fundo há-de pensar com intensificada angústia: não valeu
a pena andar a voar com tanto frenesim, porque o tempo foi mais rápido do que
eu! Como a vida é madrasta, porra!
António Figueiredo e Silva
Coimbra 10/11/20116
www.antoniofsilva.blogspot.com
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